A vitória de Trump pode ter surpreendido alguns, mas o fenômeno Trump, um demagogo fascista, não é surpreendente. Ao contrário, Trump faz parte de uma tendência internacional nítida que vem se consolidando já há algum tempo: a de um nacionalismo de direita xenófobo, racista, anti-imigrante e supostamente “antiglobalização”.
Com efeito, o Brexit britânico, a ascensão de Le Pen na França e de outros grupos de extrema direita na Europa são também fenômenos políticos da mesma natureza de Trump.
Esse fenômeno político surge claramente do capitalismo “financeirizado” e globalizado. O neoliberalismo associado à expansão desse tipo de capitalismo vem provocando, há décadas, aumento das desigualdades sociais, do desemprego estrutural e da pobreza em muitos países desenvolvidos. A crise mundial, prestes a completar uma década, apenas aprofundou e ampliou essas consequências sociais negativas do neoliberalismo internacionalizado.
No caso dos EUA, a processo de geração de desigualdades e exclusão vem de longe.
A partir do final da Segunda Guerra Mundial e até a década de 1970, a renda média dos 10% mais ricos dos EUA (em vermelho) crescia a taxas menores que a do restante da população. Os outros 90% (em azul) se apropriavam da maior parte do crescimento da renda, embora essa diferença tenha decrescido, ao longo das décadas. Assim, até a década de 1970, os EUA cresciam com distribuição de rendimentos.
Entretanto, a partir da década de 1980, há uma drástica e clara reversão dessa tendência. Com o neoliberalismo e a reaganomics, os 10% mais ricos passaram a se apropriar, de forma crescente, da maior parte do crescimento dos rendimentos. Desde aquela época, os EUA crescem aumentando a desigualdade.
Uma consequência óbvia desse processo é o empobrecimento relativo e mesmo absoluto das classes médias norte-americanas. Desde 1999, os 90% mais pobres não aumentam seus rendimentos. É isso mesmo. As classes médias e os trabalhadores dos EUA não têm aumento real de rendimentos há 17 anos. É quase uma PEC 241. Na realidade, com o decréscimo real recente dos rendimentos ocasionado pela crise, as estatísticas mostram que o rendimento médio dos lares norte-americanos é hoje inferior ao de 1989.
Outra consequência é a precarização do mercado de trabalho. Em 1970, apenas 10% da força de trabalho dos EUA tinham trabalhos a tempo parcial. Atualmente, esse índice duplicou. Os empregos gerados são, em sua maioria, de má qualidade, precários e mal pagos. Em 1979, o salário mínimo médio norte-americano era de $9,67 a hora (em valores de 2013). Hoje, ele está em apenas $7,25, apesar do enorme crescimento da produtividade.
Há também o efeito deletério do endividamento das famílias. A dívida média dos lares norte-americanos é de US$ 90.000,00, o equivalente a R$ 300 mil. E esse número inclui os lares que não têm dívida. A dívida média dos lares com dívida (a maioria) é de US$ 130.000,00, o que equivale a R$ 430 mil. No cômputo geral, a dívida das famílias norte-americanas é de US$ 12,12 trilhões, ou seja, 68% do PIB dos EUA e quase 7 PIBs do Brasil (em valores de 2015).
Assim como na campanha do Brexit, Trump se aproveitou do ressentimento das classes médias e trabalhadoras brancas dos EUA com seu empobrecimento e com sua falta de perspectivas para construir um discurso nacionalista e xenófobo de grande apelo popular. Seu slogan Make America Great Again e suas críticas aos imigrantes e a países como México e China, que “roubam empregos dos norte-americanos”, calaram fundo na massa de empobrecidos, endividados e desempregados em que se transformou a outrora pujante classe média norte-americana.
Hillary não entendeu a força desse apelo e passou a fazer críticas óbvias ao racismo, à misoginia e à xenofobia de Trump, sem oferecer uma resposta aos problemas reais dos eleitores. Tivesse sido candidato Bernie Sanders, que apresentava propostas para resolver esses problemas sociais e econômicos, o resultado poderia ter sido outro.
Obviamente, Trump não é a solução para a questão da desigualdade crescente, o empobrecimento e a falta de empregos de qualidade nos EUA. Ao contrário, ele tende a agravar esses problemas.
No governo, ele será bem diferente do que foi na campanha. Ele jamais será um presidente “antiglobalização”, ele será apenas um presidente anti-imigração, com largas pitadas de islamofobia, misoginia, racismo,etc.
E porque não? Porque as grandes empresas norte-americanas, donas do poder econômico e político nos EUA, com relações umbilicais com o Partido Republicano, são as que mais lucram com a globalização neoliberal.
A “desterritorialização” da produção física dos EUA, que se deslocou para a Ásia, principalmente para a China, foi feita, com sucesso, justamente para aumentar os lucros dessas empresas e dos seus acionistas.
Essas empresas têm cerca de US$ 5,15 trilhões de investimentos produtivos no exterior. Nesse número, não entram os capitais especulativos. Por outro lado, há US$ 3,5 trilhões de investimentos diretos de estrangeiros nos EUA, a maioria deles associados a empresas norte-americanas. Cerca de 50% das importações dos EUA, aquelas que “destroem os empregos norte-americanos”, são intrafirma, isto é, são feitas justamente por empresas norte-americanas, que fazem sua produção total ou parcialmente no exterior.
Assim, quem “rouba empregos dos trabalhadores norte-americanos”, quem aumenta a desigualdade nos EUA, não são o México, a China ou os imigrantes. São as próprias empresas norte-americanas. O “inimigo”, por assim dizer, é interno, não externo. Bernie Sanders sabe disso. Trump finge que não sabe.
Trump não desafiará os interesses dessas empresas. Mesmo se tentar, será desautorizado pelo Congresso e por seu próprio partido. Lembre-se que, nos EUA, a prerrogativa de decidir sobre comercio exterior é do Congresso, não do presidente da república, como no Brasil.
Ao contrário, Trump, como todo reacionário, republicano ou não, vai atender os interesses do capital, diminuindo ainda mais a taxação para os mais ricos e, em consequência, aumentando a desigualdade social e a precariedade laboral em seu país.
Trump vai dirigir o ressentimento de seus eleitores não a quem os prejudica realmente, mas à aqueles que os prejudicam apenas em seus delírios xenófobos: os imigrantes, os muçulmanos, os chineses, os “porcos latinos”, o “inimigo externo”, enfim.
Apple e Intel não sofrerão com Trump. Sofrerão os imigrantes que lavam os banheiros dos CEOs dessas empresas.
A direita xenófoba e racista não tem resposta para o neoliberalismo globalizante. O enfraquecimento do Estado Nação foi promovido pelo capital globalizado e “financeirizado”, que não tem mais pátria e nem compromisso com o emprego e o bem-estar de ninguém.
Apesar da comoção inicial, o Partido Republicano e a direita tradicional vão perceber que Trump será bastante útil, na medida em que dirigirá a ira dos novos deserdados contra os deserdados da terra. O inimigo do pobre será o mais pobre. De quebra, Trump, com seu temperamento explosivo, poderá fazer alguns trabalhos sujos, como o de bombardear o esforço mundial contra as mudança climáticas.
É claro que é embaraçoso para qualquer país ter um presidente como Trump, que não passa de um bufão racista e misógino. Parece um outsider vergonhoso.
Não é. Ao contrário de Bernie Sanders, ele é da turma. Da turma que rouba empregos e promove a desigualdade e a pobreza. Está tudo em casa.
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