A conjuntura política (e social) brasileira tem dado mostras de que não é exagero constatar-se que está havendo uma radicalização de uma macro-antinomia social que está colocando em risco o vínculo social (ou o que ainda resta dele) no país. Tem havido discussões se essa divisão que se aprofunda é “construída artificialmente” pelas interações praticadas nos meios digitais, especialmente embaladas por discursos de ódio e pela aderência a uma guerra cultural como se fosse uma “guerra santa” tal como pratica a extrema-direita nacional; ou então se essa divisão corresponderia a uma legítima, e agora radicalizada, oposição de modos de se conceber a vida social com todos os seus ingredientes.
Ora, essas realidades não são excludentes e trabalham juntas nesse cenário. E que sentido tem nos referirmos à construção artificial da “cabeça dos outros”, à manipulação e outros enunciados quando queremos mencionar aquilo que parece ter descarrilhado? Estamos dispostos a desresponsabilizar aqueles que aderiram ao engajamento militante e radical com base naquilo que reputamos falso?
Quando alguém acredita que princípios democráticos relativos aos direitos humanos compõem a estratégia da esquerda e de comunistas para destruir as famílias, as religiões (melhor dizer, no nosso caso, o cristianismo) e confiscar as liberdades e, principalmente as propriedades, isso não é somente um sucesso das mensagens que argumentam nessa direção. Isso também é um trabalho da recepção, ou vamos nos esquecer disso? Não há gado, não há artificialidade, há apenas processos dinâmicos de formação das identidades políticas, mas que nesse momento estão acelerados e radicalizados, como produto da ação estratégica de seus militantes.
A identidade política de muitos está se reconstruindo no âmbito de um movimento, que também é internacional, de extrema-direita. Esse movimento tem meios, tem estratégias e consegue engajar conquistando militantes que passam a dedicar bastante tempo de suas vidas no fortalecimento do… movimento. Do outro lado da antinomia, do lado democrático/progressista (que assim se vê), a identidade política, com suas variações, resulta de uma construção mais lenta e foi forjada em ambientes e com recursos culturais mais convencionais, daí sua naturalização e normalização. Ela não seria artificial e nem produto de algum “fazedor de cabeças”.
O extremismo conservador não concorda e crê que essa identidade curtida na lentidão de processos contraditórios que, as duras penas, incorpora a consciência ética sobre a questão racial, a questão de gênero, a questão ambiental e outras foi gestada por doutrinação realizada pelos sistemas educacional e artísticos. E isso, na visão extremismo conservador também é acelerado e precisa ser combatido com urgência.
Esse processo de radicalização da macro-antinomia social a partir da ação da extrema-direita não é artificial nesse sentido desqualificador, ele é inteligível e é obra social, de indivíduos e de grupos organizados. É produto de militância desse movimento, de gente disposta a conquistar seus objetivos numa disputa que para eles é bélica, mais que política. No lado do extremismo conservador houve uma mobilização intensa em torno da ideia (que é de todos e não de lideranças que manipulam) que o mundo de hoje apresenta uma ameaça radical à continuidade da existência dos “cidadãos de bem”. Nesse temor, os ingredientes são um complexo obsidional intenso, movido a escatologias conspiracionistas.
O grande problema que aí está posto, é que essas representações do mundo, desde que compartilhadas por parcelas importantes da população, o que é o caso, abole a vida política e mobiliza para a guerra civil. É antinomia radical suscetível de ruptura social concreta porque o lado democrático/progressista passa a ter também razões para representar seu futuro de maneira sombria, e desenvolver inclusive suas modalidades de complexo obsidional.
Quem sabe, essas observações façam sentido quando se nota a disposição e energia inesgotáveis da militância bolsonarista nesse início de 2023. Para seu movimento eles não perderam as eleições, aquele resultado apenas confirma algumas de suas escatologias conspiratórias; os eventos planejados de 08 de fevereiro fazem parte de uma batalha na qual eles não foram derrotados, pois seu alvo agora é continuar solapando a resistência jurídica ao seu movimento, afinal o sistema de justiça tem a função de atuar e resolver os conflitos, os desentendimentos. Simbolicamente com a desautorização do sistema de justiça (que pode acontecer) foi-se o que restava de espaço de entendimento.
Diante de tantas ações ilegais e provocadoras, vindas de todas as direções (dos bolsonaristas eleitos, dos que estão presentes no sistema midiático próprio, dos “infiltrados” em instituições do Estado, das hostes comuns de militantes) em combinação com a estratégia de promover uma radical “confusão dos espíritos” via notícias falsas que visam, sem cerimônia alguma – inclusive a tiazinha evangélica do zap – destruir reputações, nada garante que o judiciário mantenha seu equilíbrio. A busca estratégica da desmoralização do judiciário (diga-se, o Supremo) nesse momento, é a tendência inquietante que corrói nossa conjuntura. É vista com otimismo e como a batalha a ser ganha nesse momento pelo extremismo conservador. E batalha aqui não é metáfora.
Crédito da foto da página inicial: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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