Com toda pompa e circunstância, o governador de São Paulo, João Agripino da Costa Dória Júnior, lançou em Santos, em 7 de agosto último, o ‘Vida Digna’, programa de erradicação de palafitas no litoral paulista.
De boa fé, tomando a iniciativa como de fato uma política pública, e não promessa em véspera de ano eleitoral, o programa merece ser enaltecido. Afinal, há décadas a administração estadual se mostrava consideravelmente alheia à urgência do enfrentamento desse problema crônico, o das sub moradias sobre mangues estuarinos da Baixada Santista. Parece que, enfim, assumiu suas responsabilidades.
Contudo, o ‘Vida Digna’ merece também reparos. Primeiro, porque a quantidade de moradias anunciada está aquém da real demanda. Segundo, porque o programa, ao menos por ora, ignora a emergência em erradicar os cortiços – as habitações coletivas em condições insalubres no Centro Velho de Santos (e em outras cidades do Estado). Terceiro, porque, pelo que foi anunciado até agora, trata-se de mais um programa que se volta à construção de prédios, pouco ou nada integrado a outras ações.
Falemos mais sobre cada um dos reparos citados.
O ‘Vida Digna’ prevê 11 empreendimentos habitacionais em cinco cidades da Baixada Santista. Serão R$ 600 milhões em investimentos. O primeiro conjunto, na Zona Noroeste de Santos, deve ter unidades entregues em 2022. Mas a conclusão de todos os empreendimentos se dará em torno de três anos.
Com esses empreendimentos, 2,8 mil famílias serão contempladas. No entanto, isso representa apenas 15% das que vivem em palafitas na região metropolitana litorânea. De acordo com a Agência Estado, a própria Secretaria de Estado da Habitação calcula 19 mil famílias morando sobre mangues.
Além disso, tanto na solenidade de lançamento do ‘Vida Digna’ como nos materiais oficiais de divulgação não há referência à erradicação de cortiços. O que é incompreensível a um programa cujo nome propõe dar dignidade à vida de famílias em vulnerabilidade social, porque nos cortiços do Centro Velho de Santos milhares de pessoas moram em condições insalubres.
No dia 20 de agosto último, o encerramento da IV Jornada Santista do Patrimônio Histórico foi marcado justamente com um debate sobre o tema – ‘Direito à moradia digna e os cortiços de Santos’. Profissionais de arquitetura e estudantes da área apresentam informações e dados técnicos e socioeconômicos que ressaltam a necessidade de se enfrentar o problema com urgência.
Uma linha temporal apresentou iniciativas tomadas nos últimos 20 anos, e elas foram importantes no que tange à construção de marcos legais e de regras de incentivo à revitalização (com inclusão dos moradores) do Centro Velho de Santos. Os instrumentos estão postos. O que falta, como ficou evidente, é vontade política para executá-los. O debate pode ser conferido neste link: https://youtu.be/oojJ43Jo040.
O ‘Vida Digna’ dá sinais de replicar modelo de política habitacional que se atém à construção de moradias. É verdade que, pelo que foi apresentado, até se nota um salto – o programa inclui a recuperação de áreas que margeiam os mangues, com a implantação de espaços de lazer e convivência. Interessante.
Mas se faz imprescindível uma integração mais efetiva com políticas em educação, saúde, mobilidade e de geração de emprego e renda locais. Não há, por exemplo, nenhuma ação de fomento à economia solidária nos núcleos que serão criados.
Percebe-se a falta de integração até mesmo com outras iniciativas habitacionais na região. Por exemplo, dois meses antes do lançamento do ‘Vida Digna’, a Prefeitura de Santos anunciou o ‘Parque Palafitas’, voltado à comunidade do Dique Vila Gilda, considerada a maior favela em palafitas do Brasil.
O projeto se propõe inovador ao erguer casas novas no lugar dos barracos atuais, mantendo as famílias na área – exceto em casos pontuais. O mangue continuaria a ser habitado, porém em condições de sustentabilidade ambiental. O ‘Vida Digna’ vai levar em conta esse projeto? Em que medida um e outro programa se complementam ou, ao contrário, se sobrepõem? Nada a respeito foi informado ainda.
O pior disso tudo é que tanto as palafitas como os cortiços já poderiam ter sido erradicados se programas iniciados no início dos anos 1990, em nível municipal, tivessem sido continuados e recebido aportes decisivos do governo estadual. Tratam-se do ‘Vida Nova no Dique’ e do ‘Locação Social’.
Ambos, reconhecidos nacional e internacionalmente, foram concebidos e iniciados nos dois períodos de administração democrática popular em Santos (1989-1992 e 1993-1996), porém interrompidos pelas gestões sucessoras – história essa que resgatei no livro ‘Santos, 1989 – as políticas públicas que inspiraram um país (e o mundo também)’.
Crédito da foto da página inicial: vista aérea do Dique Vila Gilda/ Divulgação Prefeitura de Santos.
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