Retorno às sementes

“Quanto mais olhamos a semente e a biodiversidade mais temos noção do nível de inteligência na semente em si e do trabalho de reprodução que os agricultores têm feito para trabalhar com a semente; do nível mais alto de biodiversidade, de qualidade do alimento, de nutrição. […] Os camponeses/as não reproduzem apenas uma variedade, mas várias variedades de grãos por causa das mudanças climáticas; porque os valores nutricionais são diversos. (Trecho de entrevista com Vandana Shiva no documentário Sementes da Liberdade, 2012).

“É importante notar que não é o alimento em si o bem reconhecido como patrimônio cultural, mas sempre os saberes e práticas a ele associados, contemplando os lugares em que se realizam, as relações de sociabilidade neles implicadas, os significados através deles compartilhados.” (Renata Menasche, 2014)

Buscando dar continuidade às reflexões em torno ao conflito capital/vida na perspectiva da sustentabilidade da vida como uma proposta ética e política alternativa ao desenvolvimentismo economicista e ao neoextrativismo, pareceu-me oportuno retomar a discussão sobre as sementes como metáfora da resistência cultural e biológica e do antagonismo entre uma agricultura em bases familiares e agroecológicas e o “agro (business)”.

A conjuntura política atual expõe a relação (agro) tóxica entre a “bancada ruralista” e os poderes legislativo e executivo, em ações de “pressão” que resultam em grande medida na aprovação de pleitos da dita bancada. Cito apenas três: revisão do conceito de trabalho escravo na legislação; revisão do entendimento jurídico sobre a demarcação de terras indígenas e quilombolas; revisão da legislação sobre agrotóxicos. O marco regulatório nesses três temas sumamente importantes do ponto de vista social, ambiental e de saúde coletiva está na pauta das decisões governamentais, aguardando momento oportuno para sua aprovação. Mesmo diante da forte mobilização social em sentido contrário.

Essas três temáticas também recolocam os ataques às formas de vida, modos de produzir e de gerar conhecimentos por sujeitos da agricultura, agricultores e agriculturas familiares e de subsistência, populações tradicionais e seus territórios.

As tentativas de “revisões” também apontam para um mesmo sujeito beneficiário – grandes proprietários e homens de negócio do “agro”, que se beneficiarão com ainda mais terras, trabalho em condições análogas a escravidão e com a permissividade no uso de agroquímicos. Bom, talvez não apenas “um sujeito”, já que sabemos que não são necessariamente os grandes empresários do agro que recebem as grandes doações de campanha – neste sentido indico acompanhar e apoiar o importante trabalho do “De Olho nos Ruralistas”.

Quando se fala em produção de alimentos, comumente se mesclam discursos que envolvem o pequeno produtor/a rural e o bilionário negócio de exportações de grãos, propositalmente se oculta as importantes questões sobre “fins” e “meios”.

O fim, como de uma “suposta indústria riqueza do Brasil” e seus reais beneficiários. Ocultam-se as questões relativas à legitimidade social e quem produz de fato o que comemos; a contribuição da grande concentração de terras para manutenção do país entre os mais desiguais do mundo; o proporcionalmente pouco trabalho gerado e a sua pouca qualidade; as implicações ambientais negativas (poluição por químicos, esgotamento de reserva de águas, esgotamento dos solos); a perda do patrimônio da diversidade biológica e cultural; entre outros.

As sementes são trazidas nos discursos economicistas-desenvolvimentistas como sinônimo de grãos, ou seja, uma entidade biológica viva e múltipla se converte em sinônimo de algumas espécies já mercantilizadas, muitas vezes estéreis e vendidas no mercado internacional como commodities. As populações tradicionais (camponesas, indígenas, quilombolas, ribeirinhas) e os pequenos agricultores/as há tempos nos falam e nos mostram a diferença radical de visão sobre a semente, que se reflete nas diferentes práticas agrícolas.

A produção de sementes e de alimentos envolve também uma questão específica relacionada à soberania e segurança alimentar e nutricional dos povos. Segundo estudo publicado na revista Proceedings da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (PNAS) em 2014, já sofremos os impactos da adoção de dietas cada vez mais similares. De forma global, as dietas teriam se tornado 36% mais semelhantes nos últimos 50 anos, o que se deve principalmente ao consumo de grãos derivados de girassol, soja, arroz e trigo.

Os autores do artigo apontam um aumento da obesidade e da vulnerabilidade contra pragas como efeitos da dieta derivada dos mesmos cultivos. Este processo de erosão das culturas alimentares está na contramão do reconhecimento (tanto comunitário quanto por parte de organizações internacionais e de pesquisadores) da alimentação como um patrimônio cultural, ou seja, como uma manifestação cultural que envolve práticas e saberes de grupos sociais específicos e a sua relação com territórios geográficos e condições ambientais.

Outras propostas e práticas, é importante salientar, existem, mesmo com pouco ou nenhum apoio dos governos. Existem ações em curso nesse momento no Brasil e em todo mundo envolvendo o intercâmbio e manutenção de bancos de sementes nativas, crioulas ou camponesas, ou seja, de sementes que foram mantidas e selecionadas em distintas regiões e por várias décadas através dos agricultores/as de maneira familiar e comunitária.

Os bancos de sementes crioulas surgiram no Brasil ainda na década de 1970 para preservação através da reprodução de cultivos “ex situ” (fora do lugar de origem) ou “in situ” (mesmo local de origem).  Atualmente em praticamente todas as regiões do Brasil existem bancos comunitários de sementes crioulas e práticas de feiras e trocas sustentadas por agricultores/as familiares e pequenos agricultores.

Como por exemplo: Banco Comunitário de Sementes Crioulas de Cristalina (Goiás); as Casas Comunitárias de Sementes Crioulas em várias regiões do Brasil organizadas pelo Movimento dos Pequenos Agricultores; as Sementes da Paixão em Borborema (Paraíba); Rede de Sementes do Xingu (Mato Grosso ao Pará); ações em diferentes estados organizadas pelo Movimento de Mulheres Camponesas; entre inúmeras outras.

Finalizo essas reflexões convidando a conhecerem a proposta do Coletivo Sementeia de significar as sementes crioulas como potências  de existência e resistência – resistência ao modelo de agronegócio e monocultivo, ao padrão tecnológico transgênico – potências de existências da diversidade e metáforas vivas da sociobiodiversidade das culturas camponesas e indígenas, tradição/evolução, transformação/resiliência.

Nessa concepção, os processos crioulos de produção simbólica se constituem na integração da comunicação, educação, redes sociais e tecnologias da informação para apoiar e estimular a proliferação da memória cultural e as semânticas das comunidades tradicionais e camponesas, usualmente tornadas marginais e residuais pelos discursos hegemônicos de modernização e desenvolvimento.

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