Desde a retomada da democracia e das eleições diretas no Brasil, constituiu-se no País um regime que ficou conhecido na literatura acadêmica como “presidencialismo de coalizão”. Dada a quantidade elevada de partidos efetivos e a grande fragmentação política, a governabilidade do presidente (a) de plantão só poderia ocorrer por meio da construção de um amplo espectro de alianças políticas, composta por diversos partidos das mais diversas correntes ideológicas.
Desta maneira, o papel dos partidos políticos como mecanismos de reduzir o custo de informação ao eleitor, ao apontar para o cidadão um conjunto de valores e ideais que os representam, foi se reduzindo e se tornou cada vez mais difícil a definição do que cada partido representa na vida pública.
A constituição destas grandes “alianças” partidárias representava a construção de um pacto de governabilidade, um seguro para o governante de ocasião que garantia que ele não sofreria derrotas seguidas no Congresso Nacional, em particular em relação à sua permanência no poder.
Esta aliança, no entanto, não garantia força política suficiente para a aprovação de reformas estruturais de grande porte, que envolviam interesses complexos de poderosos grupos sociais e regionais.
Este arranjo explica como, mesmo com grandes “bases aliadas”, tanto governos tucanos como petistas foram incapazes de avançar de maneira decisiva em reformas da estrutura tributária e/política nacional. Ou seja, o “presidencialismo de coalizão” é uma maneira de garantir estabilidade e governabilidade para o governante da vez em troca de cargos e benesses para os aliados, eventualmente possibilitando a aprovação de reformas graduais, desde que sem alterar as estruturas de poder vigentes.
Os primeiros sinais de enfraquecimento deste tipo de arranjo político começaram a ocorrer ao final do primeiro governo Dilma Rousseff, mas se consolidaram apenas neste início de segundo mandato. Em outros momentos da história, como no impedimento de Collor e ao final do segundo mandato de FHC, a funcionalidade deste regime pode ser questionada.
No entanto, a falta de apoio aos então governantes se explicava por um realinhamento das forças políticas, que abandonaram (explícita ou implicitamente) o projeto vigente para aderir a um novo projeto, levando consigo todas as características tradicionais do presidencialismo de coalizão. Não havia, portanto, uma inviabilização do sistema político, mas sim do projeto político do governo de plantão.
No caso do governo Dilma, o mesmo poderia ser dito caso a candidata tivesse sido derrotada no pleito de outubro: o eventual esvaziamento de sua base de apoio parlamentar ao final do governo decorreria do realinhamento político de alguns dos principais partidos da base aliada (em particular o PMDB), o que culminaria na eleição de um candidato oposicionista, pronto para construir uma aliança e um novo governo sob o presidencialismo de coalização.
A história, no entanto, pregou uma peça nos analistas políticos mais apressados: a reeleição de Dilma Rousseff homologou o projeto de um governo que estava vendo sua base parlamentar crescentemente fragilizada e fragmentada. Mesmo a tentativa do governo de recuperar sua base aliada por meio da distribuição de ministérios (fato recorrente e definidor do presidencialismo de coalizão) não surtiu o efeito esperado, e o governo iniciou 2015 com minoria no Congresso Nacional.
Esta nova realidade política, inédita nos governos brasileiros pós-democratização, mas comum em outros países (nos EUA, por exemplo, o governo Obama não possui maioria congressual), parece gerar duas interpretações no debate público: a primeira, de que o presidencialismo de coalizão continua eficaz, apenas sendo manejado de maneira inábil pelo governo atual, o que explicaria suas seguidas derrotas. Neste caso, a solução evidente é reforçar a articulação política, abrir mais espaço para os partidos da coalizão e retomar o diálogo com os dirigentes do parlamento, fato muitas vezes reclamado pelos políticos a respeito do atual governo.
A segunda interpretação, que parece ganhar adeptos no debate público, é que o “presidencialismo de coalizão” entrou em crise, sendo substituído por um regime “semiparlamentarista”, em que os presidentes das casas congressuais e seus integrantes dominariam a agenda política do País, cabendo ao governo apenas o papel de homologar as decisões congressuais, sob o risco de ver sua continuidade ameaçada pelo impedimento.
Eventos políticos recentes, no entanto, parecem não dar razão completa nem à primeira, nem à segunda interpretação. É verdade que o governo, ao nomear o vice-presidente Michel Temer para a articulação política e realizar algumas mudanças ministeriais, parece ter reduzido o risco político imediato, melhorando a articulação política em linha com o proposto pela primeira tese.
Também é fato que o presidente da câmara, Eduardo Cunha, mantém um elevado controle sobre a pauta e o voto de boa parte do Congresso, conseguindo fazer avançar pautas que contrariam o interesse imediato representado pelo governo e pelo partido da presidente, o PT.
Mas o sucesso recente dos movimentos sociais, em aliança com os partidos de esquerda, de adiarem e imporem constrangimento aos parlamentares conservadores na votação da PEC 4330 pode indicar uma realidade bastante curiosa no cenário político nacional: a da consolidação de um governo de minoria em meio ao presidencialismo de coalizão. Neste cenário, as concessões recentes do governo serviriam unicamente para garantir sua permanência, mas seus projetos e pautas seriam defendidos por uma aliança rara entre partidos políticos de esquerda e movimentos sociais organizados.
A possibilidade de o governo Dilma 2 se constituir em um governo de minoria não implica, necessariamente, uma constante ameaça à estabilidade institucional, como defendem alguns analistas. O “presidencialismo de coalizão” irá sobreviver, mas de maneira diferente daquela em que operava até o passado recente. Ele apenas será suficiente para garantir a estabilidade do governo, não garantindo maiorias nem para a defesa das pautas mais centrais do projeto governista.
Desta forma, o papel do PT, partido formulador das principais políticas do governo atual, deverá mudar também: ao invés de tentar articular consenso acerca de pautas do governo negociadas no Congresso Nacional, o partido deverá se concentrar em se articular com outros partidos de esquerda e movimentos sociais, disputando os caminhos do governo e da agenda parlamentar, impedindo o avanço das forças conservadoras.
Este novo papel do partido, se bem exercido, pode ser a tábua de salvação para o PT e para o governo: o primeiro, por retomar o diálogo com suas bases e voltar a se abrir para a sociedade; o segundo, por não se ver completamente descaracterizado tendo que homologar decisões de um Congresso conservador, que não representa seu verdadeiro projeto de transformação do Brasil.
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