Por que o governo eleito sucumbirá frente à mídia tradicional no Brasil

1. Ultraliberalismo neopentecostal

Enquanto os detalhes para a compreensão da macroeconomia encontram-se nas finanças, para a microeconomia interessam as tecnologias e suas transformações estruturais, de longo termo. De um lado, banqueiros, de outro, grupos industriais.

No Brasil, a hegemonia financeira sobre o Estado se impôs desde o fim dos anos oitenta, quando se estabeleceram as condições para renegociação da então impagável dívida externa. Tomadas conjuntamente, a liberalização, o programa de privatizações e a sobrevalorização cambial permitiram a reinserção do Brasil no sistema financeiro internacional.

A repercussão sobre a indústria brasileira foi, durante os anos noventa, devastadora. A cadeia produtiva de partes, peças, componentes e sistemas automotivos foi inteiramente desnacionalizada. Situação comparável ocorreu sobre grupos nacionais fabricantes de eletrodomésticos. A abertura comercial permitiu às transnacionais no Brasil a troca de fornecedores locais por qualquer outro, situado onde fosse barata a mão de obra (Leste Europeu e Ásia).

Durante o primeiro período do Partido dos Trabalhadores (2003-2014) mantiveram-se os canais anteriores de sangria comercial e financeira, bem como as condições para que qualquer estrangeiro pudesse adquirir qualquer quantidade de ativos reais ou financeiros em moeda local. E não se pagasse impostos por isso. O resultado foi nova onda de desnacionalização das firmas industriais na primeira década e meia do novo século.

O golpe dos corruptos (2015-2018) precedeu o triunfo do ultraliberalismo no Brasil. Durante este período foram destruídas as firmas de construção civil, ferida a Petrobrás e punidos processadores de proteína animal. Últimos sobreviventes do grande capitalismo industrial brasileiro, postos de quatro pela terceira onda de desnacionalização. Os banqueiros pareciam haver derrotado, ao termo do ano de 2016, por muitas décadas adiante, qualquer ameaça advinda de um projeto de país.

Não se deve esquecer que Luiz Inácio Lula da Silva é liderança sindical impulsionada dentro dos escritórios das grandes montadoras no Brasil. No início dos anos oitenta, basicamente GM, Ford e Volkswagen. A partir dali o PT dominou, durante mais de uma década, a tecnologia eleitoral. Apropriou-se dos meios de financiamento de campanhas disponíveis à época e, principalmente, cercou-se de estrategistas em opinião pública e gestão de imagem. Preparou-se para batalha política contra o complexo financeiro-midiático no terreno do próprio adversário – nos espaços editoriais-publicitários corporativos.

A eleição de J. M. Bolsonaro se inscreveu como inflexão na história do marketing político no Brasil. Pela primeira vez se utilizaram tecnologias para gestão da opinião pública com emprego de algoritmos de inteligência artificial sobre conjunto de informações disponíveis sobre cada indivíduo. Após processamento, resultou estratégia de mobilização em redes sociais, através de grupos de whatsapp, facebook etc. Para isso, empregaram-se robôs digitais, capazes de buscar, processar e devolver informações de maneira mais ou menos autônoma. São de conhecimento público os depoimentos do CEO do Facebook no Senado norte-americano sobre o uso de informações classificadas nas eleições dos EUA (escândalo da Cambridge Analytics).

A eleição de Bolsonaro em 2018 resultou, entre outros motivos, da mobilização de forças sociais organizadas por lideranças cristãs neopentecostais. Este subconjunto social sobrepujou, pela primeira vez desde o final dos anos 90, a capacidade mobilizadora dos inúmeros movimentos sociais dedicados ao combate da desigualdade.

Para a vitoriosa aliança entre banqueiros e neopentecostais outorgou-se mandato conservador que invade todas as dimensões da vida material (moral, educação, cultura, saúde, etc.). Um conservadorismo que se choca com fundamentos do próprio liberalismo – o contraditório entre a liberdade, igualdade, fraternidade e seu oposto autocrático neocolonial brasileiro.

Elemento decisivo na derrota eleitoral das “esquerdas” em 2018, a tecnologia de redes de relacionamento foi direcionada principalmente aos cristãos neopentecostais. O tempo da história ainda irá depurar o real montante de recursos dedicados ao grupo político da família Bolsonaro, principalmente o montante devido às agências de publicidade coordenadas pelo ex-assessor da Casa Branca, Steve Bannon.

As tecnologias introduzidas no Brasil nas eleições de 2018 permitiram manipulação da opinião pública em escala superior ao que a “velha técnica” de bombardeamento em TVs, rádios e jornais impressos pode alcançar. Ao serem empregadas maciçamente no Brasil em 2018, as “novas tecnologias” permitiram a reversão da narrativa sobre o período PT (2003-2014), criando-se condições para novo ciclo político.

Ocorre que a componente neopentecostal ambiciona, ao contrário dos pares banqueiros ultraliberais, poder sobre o território e sua gente. Com isso, torna-se dependente do bom relacionamento com o governo dos EUA para acessar tecnologias que os protegerão de ataques, principalmente da mídia corporativa brasileira.

Por outro lado, caso esta teocracia tenha sucesso no encaminhamento das “reformas” (da previdência, tributária, política, constitucional etc.), muito possivelmente contarão com acesso recursivo às “novas tecnologias” de gestão da opinião pública. Mais do que as armas ou o dólar, esta se apresenta como nova e eficaz forma de enquadramento neocolonial.

O objetivo do presente artigo é discutir como a intervenção do núcleo político do Governo sobre o mercado de mídia corporativa contribuirá para o afastamento dos banqueiros e dos militares, levando-se o Governo à renúncia por forças que preservem a correta gestão da opinião pública, aquela que prioriza a agenda de “reformas” e de combate ao crime organizado no país.

2. A mídia tradicional no Brasil

O setor de mídia corporativa no Brasil possui elevada concentração em algumas poucas empresas que alcançam cobertura nacional. Ao longo do tempo, se especializaram na produção de conteúdo dramático, jornalístico, esportivo e “de auditório”, incluindo-se ai reality e talk shows.

Quatro grupos privados controlam a TV aberta no Brasil: Band, Globo, SBT, RedeTV! e Record (Figura 1).

A penetração da TV aberta no Brasil ainda é muito maior que de outros veículos de comunicação (Figura 2). Depreende-se que o grupo Globo desempenha liderança, até bem pouco tempo, incontestável na articulação estratégica do setor.

Em estruturas de mercado do tipo líder-seguidores, espera-se aumento na intensidade da concorrência em situações em que algum seguidor ameace a liderança.

O comportamento editorial-publicitário da mídia corporativa desde o acirramento da corrida eleitoral em 2018 tem mostrado rejeição (O Globo, JN e FSP) a Bolsonaro.

O crescimento das matérias contrárias a partir de julho de 2018 mostra o quanto a mídia corporativa se encontrava comprometida com candidaturas percebidas como menos arriscadas para a implementação das “reformas”. Não obstante, houve também crescimento de matérias favoráveis, as quais preparavam o terreno para a agenda ultraliberal que se avizinhava.

Daí o crescimento da ambiguidade na mídia corporativa até a eleição. Enquanto, de um lado, protegia o interesse da contraparte financeira, dos bancos, por outro lado tratava de influenciar o processo eleitoral. Como elemento percebido como igualmente favorável, a disponibilidade dos militares em constituir este novo governo, conferindo-se garantias institucionais para a gestão política da tresloucada famiglia.

O que a mídia corporativa não poderia jamais imaginar é o grau de intensidade do apoio norte-americano no uso das “novas tecnologias” eleitorais. Lá, mais do que aqui, D. Trump se levantou contra a mídia tradicional como parte de enfrentamento contra o complexo midiático-financeiro.

Aqui na colônia, o embate com a mídia corporativa se deu com a escolha deliberada de seguidores (Record e SBT) como canal privilegiado para gastos com a comunicação governamental. Esta escolha desagradou não apenas a líder Globo, mas também a Igreja Católica, que viu no movimento neopentecostal ameaça institucional. Isso explica o fim do alívio editorial dado pelos veículos corporativos ao recém-eleito presidente. Ao menos até o dia 21 de dezembro. Ao longo deste dia declarou o presidente por twitter:

“Revisaremos diversos contratos e reavaliaremos o quadro pessoal da Secom a fim de reduzir ainda mais o orçamento para 2020. Vamos mostrar, nesta e em outras áreas, na prática os benefícios da correta aplicação de recursos públicos”.

As estatísticas de fevereiro, incompletas, revelam o quanto o desastre protagonizado pela Cia Vale foi benéfico para distrair a opinião pública das graves acusações de ligação dos Bolsonaros com as milícias no RJ.

3. A mídia digital no Brasil

A mídia digital, apesar de elevada penetração, encontra-se muito fragmentada e significativamente heterogênea. Por abrigar narrativas contraditórias ou intencionalmente falsificadas, a mídia digital integrada com veículos tradicionais ganhou credibilidade. Assim como conquistou credibilidade conjunto pequeno porém importante de veículos com conteúdo voltado para público urbano bem formado e crítico, entre os quais se insere o Brasil Debate, GGN, Carta Capital, Conversa Afiada, Carta Maior, entre outros.

Já no campo oposto, as “novas tecnologias”, quando aplicadas a processos eleitorais, visam a destruir reputações em curto espaço de tempo. Em seu turno, propõem-se a não durar muito, a atuar de maneira intensa e rápida. Cumprem propósito de conquista de posições. Depois disso, não são eficazes no longo prazo, deixam às claras a farsa. Por isso, são empregadas com uma data de corte no curto prazo (eleições). São utilizadas como arma, cuja munição acaba rápido.

Esta é a principal diferença quando comparada relação entre Governo e mídia tradicional nos EUA. Enquanto D. Trump encontra diversidade de posições editoriais favoráveis e contrárias na mídia corporativa, no Brasil há tendência à construção de narrativa única. Esta tendência foi rompida com a eleição de Bolsonaro. A partir de agora irão conviver narrativas contraditórias no terreno onde, até hoje, no Brasil, houve hegemonia. A confusão e a polarização da sociedade tendem a aumentar.

Ao escolher a Record e o SBT como interlocutores privilegiados, o Presidente equivocou-se por ao menos uma razão óbvia – a manutenção de narrativa única e universal parece inegociável para banqueiros interessados nas reformas ultraliberais e na “gestão de expectativas”.

Desta maneira, ao menos no Brasil, o grupo Globo parece deter posição privilegiada como gestor da opinião pública. Além de hegemônica, a Vênus platinada conta com a proximidade dos interesses financeiros internacionais, aos quais se subordina ao menos desde a criação da TV em 1964. Por esta razão, tem sido beneficiada com recursos públicos em grande monta. Em 2016 foram cerca de R$ 320 milhões, garantindo-se a posição competitiva da empresa. No mesmo ano a Record recebeu, do Governo Federal, cerca de R$ 170 milhões (Figura 4). A partir de 2017 o Governo Temer não divulgou mais resultados.

4. Conclusões

No Brasil ocorre progressiva desnacionalização da indústria brasileira, medida em quatro ondas históricas com origem nos anos noventa. Com isso, desapareceram do cenário político interesses industriais nacionais. A banca triunfou e a indústria internacional vive hoje momento de relocalização (America First).

Após o Golpe dos Corruptos em 2015/16 os interesses financeiros passaram a ocupar posição hegemônica incontestável na formação do pacto político. No entanto, o furor religioso e a proximidade com as milícias parecem atrapalhar a agenda dos bancos (reformas previdência, tributária etc.) após a eleição de  Bolsonaro.

Quanto mais o Governo Bolsonaro intervier sobre o “mercado de TV aberta”, por exemplo através de remanejamento de verbas federais, mais a líder Globo irá coordenar esforços com os bancos para sua substituição pelos militares. Da mesma maneira que a mídia liberal nos EUA quer impedir Trump, com apoio dos bancos.

Por outro lado, fator de sucesso político de Bolsonaro nas eleições de 2018, as “novas tecnologias digitais” introduzidas por Steve Bannon não possuem emprego permanente, mas ocasional. Como uma arma, não podem ser usadas permanentemente, sob risco de perda de eficácia.

Mais crítico que isso, sem uma burguesia industrial tecnológica brasileira, dificilmente as instituições públicas garantirão a democracia no país. Os grupos industriais nacionais são os únicos capazes de desenvolver medidas defensivas contra a aplicação unilateral e estrangeira de “novas tecnologias”.

Por estas razões, entende-se que o fracasso do Governo Bolsonaro será breve e inevitável, caso não volte atrás na política de intervenção no segmento de comunicação social. Este fracasso corresponderá à ascensão dos militares, os quais não manifestam proximidade nem com a burguesia neopentecostal, nem tampouco com a “solução miliciana” para a segurança nacional.

Crédito da foto da página inicial: TV Globo

Comentários

Uma resposta para “Por que o governo eleito sucumbirá frente à mídia tradicional no Brasil”

  1. Avatar de Daniel S. Lacerda
    Daniel S. Lacerda

    Faz diferença a disputa cultural dos costumes e a luta partidária se for mantida a hegemonia da cultura neoliberal? Até que ponto será que Record e SBT não vão de fato ser dissonantes da Globo quando o assunto for reforma da previdência, privatizações, etc? Acho difícil desenhar um cenário onde a banca perde.

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