Pensando em longo prazo: O que a esquerda tem diante de si

Em qualquer processo de longo prazo, muitas vezes até mesmo para garantir sua continuidade, faz-se necessário um parênteses de ajustamentos ou mudanças estratégicas e/ou táticas. A aprovação, pelo Senado brasileiro, do golpe de impeachment contra a presidente Dilma, alargou um desses parênteses que já vinham colocando em risco a ainda pouca democracia, assim como as limitadas conquistas, que haviam beneficiado as camadas trabalhadoras e populares brasileiras nos últimos anos.

Do ponto de vista tático, isto é, conjuntural e imediato, as forças políticas de esquerda talvez tenham diante de si pelo menos três problemas a serem enfrentados. O primeiro está relacionado ao fortalecimento da unidade democrática e popular em torno da resistência ao golpe, com uma pauta clara e unitária de combate ao governo ilegítimo, e às maiorias parlamentares e judiciárias golpistas.

Isto significa, entre outras coisas, definir os pontos da Constituição, assim como os direitos sociais e políticos, que devem merecer, por parte de todas as forças de esquerda, uma defesa ferrenha, indivisível e inegociável, diante da ofensiva regressista e reacionária que ameaça destruir tais pontos e direitos.

Em segundo lugar, como decorrência, as forças de esquerda talvez tenham que operar no sentido de transformar a Frente Brasil Popular numa organização ainda mais ampla, incluindo setores sociais e políticos de centro que se opuseram ao golpe parlamentar e judiciário.

Será ledo engano supor que a esquerda sozinha terá condições de se contrapor ao processo reacionário golpista. O impeachment foi apenas o primeiro passo para liquidar os direitos democráticos e sociais conquistados na Constituinte de 1988, realinhar a política externa aos ditames das ordenações norte-americanas, e aprofundar a macroeconomia de subordinação às transnacionais rentistas. O que tendem a colocar em prática é muito mais grave.

Em tais condições, talvez seja necessário adotar a convocação de uma nova Assembleia Constituinte como uma das bandeiras unificadoras contra o golpe. Isto é, uma Constituinte capaz de implementar as reformas democráticas e populares que ficaram inconclusas durante os governos Lula e Dilma.

Mesmo porque seria um erro supor que eleições antecipadas, ou Diretas Já!, mesmo que permitam a vitória das forças democráticas e populares, sejam capazes, sem um amplo debate popular e sem uma poderosa mobilização social em torno delas, de permitir a implantação de tais reformas contra o domínio das forças conservadoras
e reacionárias.

As mobilizações do dia 04/09 mostraram que há condições para ampliá-las ainda mais se o debate em torno das reformas que o povo precisa entrarem na pauta. “Abaixo o Golpe!”, “Fora Temer” são slogans fortes e necessários. Porém, após a decretação do impeachment tornaram-se insuficientes, por não contemplarem as reformas democráticas e populares que o país necessita.

Em terceiro lugar, todas as forças de esquerda, quase certamente, terão que se voltar prioritariamente para as camadas trabalhadoras e populares da população brasileira, inclusive através da recuperação da experiência petista dos anos 1980.

Nada como esses setores da base da sociedade, a maioria esmagadora dos brasileiros, para ensinar o que realmente sentem e reivindicam, e como se organizam para enfrentar a luta cotidiana e de longo prazo. É tal ensinamento, mais do que todos, que pode criar melhores condições para alianças mais estreitas das forças de esquerda, e mais amplas com outros setores sociais e políticos.

Do ponto de vista estratégico, é quase certo que a esquerda, em especial o PT, precisará partir do princípio de que, apesar da reação popular de 04/09, ela e o povo brasileiro ainda se encontram numa situação de defensiva e retirada estratégica. Retirada cujos objetivos chaves consistem em evitar a reimplantação da brutal e miserável
desigualdade social dominante até 2002, barrar a implantação de uma ditadura disfarçada, e impedir a destruição da esquerda.

Nesse sentido, também cabe à própria esquerda impedir qualquer aumento em sua dispersão e desagregação, ou algo idêntico ao que ocorreu com o PCB em 1964. Isto, certamente, não deve ser encarado como simples força de expressão. Esse fenômeno foi desastroso naquela ocasião, foi gravemente errado com o PT, em 1995-96, e pode se tornar catastrófico neste momento.

Nesse sentido, talvez seja fortemente recomendável que a maioria que dirigiu o PT nos últimos 20 anos reconheça os erros estratégicos que cometeu. Refiro-me principalmente à conciliação de classes; à prioridade para as atividades institucionais; ao abandono da ligação com as bases sociais; ao desprezo pelos processos de formação
ideológica e política; à imitação dos métodos burgueses de sustentação partidária; e à leniência com casos de tráfico de influência e de corrupção.

A disposição de debate e corrigir tais erros numa discussão franca e aberta com toda a militância partidária pode ser fundamental para a recuperação combativa do PT. As tentativas de fugir ou escamotear tais erros e a discussão a respeito deles, além de representarem um obstáculo ao sucesso da atual fase de defensiva estratégica, podem
criar embaraços intransponíveis à elaboração de uma nova estratégia.

Essas parecem ser as condições básicas para reverter a situação criada pela ofensiva da direita reacionária, mesmo considerando que esta direita tem pés de barro. Ela está encalacrada em processos de corrupção. Já deixou evidente que pretende demolir direitos econômicos, sociais e políticos caros às camadas populares. Demonstrou, desde a abertura do processo de impeachment e dos primeiros dias de interinidade, tratar-se de um bando medíocre e vendido, incapaz de tratar e resolver as grandes questões demandadas pela sociedade brasileira. No entanto, conta com o respaldo de forças poderosas, nacionais e internacionais, e será necessário encará-lo e combatê-lo no contexto dessas coberturas.

Em outras palavras, se houver a correção de rumos estratégicos e táticos da esquerda, em especial do PT, há a possibilidade de colocar os golpistas contra a própria parede que estão construindo, impor a manutenção do calendário eleitoral, disputar as eleições de 2018 com forças renovadas, e tomar a luta por uma Constituinte de reformas democráticas e populares como um dos eixos de uma nova estratégia de mudanças. No entanto, se a resistência interna a tal correção se mostrar maior do que a vã inteligência supõe, o parênteses aberto pelo golpe cunhista, temerista, caiadista, aecista, peemedebista, tucano, demista et caterva, talvez se prolongue dolorosa e terrivelmente, não somente para a esquerda, mas para todo o povo brasileiro.

Crédito da foto da página inicial: Jornalistas Livres

Comentários

2 respostas para “Pensando em longo prazo: O que a esquerda tem diante de si”

  1. Avatar de Renato Dagnino
    Renato Dagnino

    Gostaria de adicionar à crítica do Wladimir Pomar um outro componente estratégico. Concordo com ele que houve um “desprezo pelos processos de formação ideológica e política”. Mas, mais do que isso, houve uma incompreensão de que o caminho da democracia burguesa demandava formação dos militantes para uma gestão pública que permitisse orientar o Estado da classe proprietária para além do capital. Nosso livro recém publicado – Gestão Estratégica Pública (http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/gestao-WEB-final.pdf) – visa proporcionar à esquerda a capacidade estratégica para uma nova ofensiva.

  2. Avatar de Antonio Elias Sobrinho
    Antonio Elias Sobrinho

    Essas propostas são razoáveis, como alternativa, porém desprovidas de fundamentos, na medida em que seu princípio básico é a união das esquerdas, coisa fora de propósito na história política do país. Aliás, pelo contrário, a regra aqui sempre foi a dispersão, sobretudo nas crises. Essa próxima eleição é uma prova disso. O golpe ainda está fresquinho e o que se vê é, de um lado, alianças dos partidos de esquerda com os partidos responsáveis pelo golpe e, nas duas cidades mais importantes do país a pulverização que certamente inviabilizará algum êxito. Acho que na raiz dessa esquizofrenia encontra-se a arrogância que para no seguinte princípio: somos a favor da unidade, contanto que seja sob nossa hegemonia.

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