Ricardo Carneiro, Paulo Baltar e Fernando Sarti publicaram um livro digital (São Paulo: Editora Unesp Digital, 2018) com uma coletânea de ensaios cujos autores fazem uma abordagem estruturalista do movimento recente da economia brasileira: Para Além da Política Econômica. Contrapondo-se à análise neoliberal, motivou mais de vinte mil downloads gratuitos em: https://www.eco.unicamp.br/index.php/50-anos/398-para-alem-da-politica-economica
Fernando Sarti e Celio Hiratuka enfatizam a constituição de uma rede internacionalizada de produção e fornecimento ter promovido um intenso deslocamento da produção industrial dos países avançados em direção a, sobretudo, os países do Leste Asiático. Eles denominam este processo de “chinalização industrial”.
Essa internacionalização da produção reforçou as vantagens de diferenciação e de custo advindas das economias de escala e escopo. As maiores escalas e os menores custos proporcionaram preços industriais decrescentes com impactos significativos sobre a rentabilidade e os investimentos das atividades industriais.
O cenário econômico adverso ao desenvolvimento industrial local e as estratégias defensivas das empresas industriais instaladas no Brasil, no período pós-crise internacional, favoreceram um padrão de inserção externa assimétrica e subordinada nas cadeias globais de produção. O aprofundamento da internacionalização produtiva, reforçado pelos intensos fluxos de investimento externo, ampliou a desnacionalização da base produtiva e a transferência do controle de decisões estratégicas de produção, comercialização e investimento para o exterior.
O resultado foi o aprofundamento da especialização regressiva da estrutura produtiva acompanhada da elevação do conteúdo importado e do coeficiente de importações. Não houve a contrapartida de um aumento proporcional do coeficiente de exportações manufatureiras e, pior, dos investimentos industriais na economia brasileira.
Esse quadro desfavorável foi agravado pela forte redução da rentabilidade industrial em função de redução global dos preços industriais, contração da escala de vendas domésticas, pressões de custos salariais e das despesas financeiras. Houve perda de participação do valor agregado manufatureiro brasileiro em relação ao global e ao dos países emergentes industriais.
Com a recessão da economia e da indústria, ganharam vulto posturas defensivas das empresas, como a alocação de recursos em ativos mais líquidos e de retorno mais rápido. Neste sentido, a participação da receita financeira em relação à receita total subiu quando a taxa de juros voltou a se elevar em abril de 2013.
Porém, a partir de 2014, os balanços das empresas industriais se fragilizaram, porque uma maior parcela da receita corrente passou a ficar comprometida com o pagamento de despesas contratuais como impostos e despesas financeiras. O crescimento dos salários não foi acompanhado de reduções correspondentes em custos cambiais (embora muitas empresas se valessem das desonerações fiscais), e ficou acima do aumento de produtividade. Daí registrou-se uma significativa perda de competitividade em quase todos os setores industriais, exceto o intensivo em recursos naturais, em particular, o setor de alimentos.
Bruno De Conti e Nicholas Blikstad destacam o papel-chave da capacidade ociosa na indústria chinesa para reversão cíclica. Da perspectiva da economia mundial, o alto grau de capacidade ociosa em um contexto de economias integradas impõe um amortecimento à produção industrial e, notadamente, aos investimentos em outros países. Os efeitos (diretos e indiretos) do dinamismo chinês sobre a economia brasileira resultam dos principais vetores originários dos impactos: o comércio exterior e o Investimento direto estrangeiro (IDE).
Os “efeitos China” sobre o comércio exterior brasileiro são aumento das exportações de commodities e queda nas exportações de manufaturados. Quanto ao caráter geopolítico do IDE, os setores priorizados são nitidamente aqueles ligados a recursos naturais, infraestrutura e, sobretudo, energia. O papel do Brasil na divisão internacional do trabalho vem se efetivando como sendo “a fazenda do mundo”, enquanto a China se torna “a fábrica do mundo”.
Pedro Paulo Zahluth Bastos e Celio Hiratuka destacam a convivência de apreciação cambial com abertura comercial ter resultado em uma “doença brasileira”: o fato de as unidades produtivas locais se adaptarem estruturalmente à divisão internacional do trabalho industrial, construída desde a década de 1980, com a redistribuição da indústria em cadeias produtivas regionais ou globais. Passaram a importar bens de capital, partes, peças e componentes especializados para montagem industrial dos bens finais no Brasil. Virou uma indústria “montadora ou maquiadora”.
Em síntese, segundo Paulo Eduardo Baltar, Jacqueline Souen e Guilherme Campos, diferentemente da narrativa neoliberal da Era Social-Desenvolvimentista (2003-2014), ficaram na memória popular as principais tendências do mercado de trabalho no período de crescimento com inclusão social. O emprego formal cresceu além do número total de pessoas ocupadas. A taxa de desemprego diminuiu não tanto pelo vigor do aumento do número de pessoas ocupadas, mas sim devido à diminuição no ritmo de crescimento da população economicamente ativa (PEA), provocado principalmente pela redução na taxa de participação das pessoas na atividade econômica e aumento de anos de escolaridade.
A dinâmica demográfica e, principalmente, o adiamento da entrada na atividade econômica foi alterando a estrutura etária da PEA, reduzindo a proporção dos mais jovens, com implicações importantes para o mercado de trabalho. O aumento do valor do salário mínimo e os ganhos reais das negociações das categorias profissionais elevaram o poder de compra da renda do trabalho e reduziram a dispersão.
Na geração de emprego e renda desse período destacou-se, então, a formalização da atividade econômica e dos contratos de trabalho. As razões para essa formalização vão desde o crescimento mais forte e continuado da economia, passando pelo maior cuidado das autoridades do governo social-desenvolvimentista para com essa formalização – visando a aumentar a arrecadação de impostos e contribuições sociais para lograr as metas de superávit primário –, até um tratamento tributário e contributivo diferenciado para os pequenos negócios (Simples), com o objetivo de estimular sua formalização.
A recuperação da indústria pressupõe a existência de vetores de crescimento da demanda. Com relação às exportações, dependente da demanda externa, a inserção mais virtuosa nas cadeias regionais ou globais de valor dependerá, de um lado, da estratégia adotada pelas filiais de empresas estrangeiras presentes em quase todos os setores industriais e, de outro, de um maior grau de ousadia e capacidade de assumir riscos para investir em recursos produtivos e ativos intangíveis por parte das fragilizadas empresas nacionais. Isso possibilitaria aprofundar o ainda tímido processo de acúmulo de capacitações e internacionalização produtiva e comercial.
As filiais de empresas transnacionais têm adotado as decisões estratégicas sobre quanto produzir e investir e onde importar ou para onde exportar, fazendo a gestão dos diferenciais de capacidade ociosa e de custo. Assim, além do fortalecimento das relações do Brasil com América Latina, África e países do BRICS, e do avanço do acordo de integração econômica entre Mercosul e União Europeia, a política cambial terá de cumprir um papel-chave para uma inserção comercial mais virtuosa.
Outro vetor importante de demanda é a recuperação do consumo. São condições básicas para a reconstrução de um mercado de massa: a redução do nível de desemprego, atualmente em torno do patamar de 13% da PEA, o retorno de uma política de reajuste real do salário mínimo, a redução das taxas de juros e dos spreads para patamares civilizados e condizentes com a prática internacional, e a montagem de um novo ciclo de crédito.
Diante de um quadro de recessão, a recuperação industrial se inicia pela ocupação da capacidade ociosa, portanto não é de esperar uma recuperação dos investimentos industriais tão cedo. Nesse caso, os investimentos “autônomos” em relação à expectativa de demanda, realizados em razão de política pública em infraestrutura (logística, energia, telecomunicações e saneamento) e na própria construção civil residencial e pesada assumem um papel estratégico na expansão da taxa de investimento geral e da demanda por bens industriais, sobretudo da indústria pesada.
A recuperação de um ou mais vetores de demanda constitui-se em condição necessária, porém não suficiente, para o desenvolvimento industrial brasileiro. O vazamento de parte substancial da demanda por bens industriais para as importações nas últimas duas décadas, e com maior intensidade depois do início da crise internacional, impediu a recuperação da produção e do investimento industrial e uma trajetória mais estável e sustentada de crescimento. É fundamental gerar demanda, mas também o é capturar essa demanda para o desenvolvimento industrial e tecnológico.
Assim como o processo de “chinalização industrial” impôs um novo patamar de economias de escala e de escopo, e, portanto, de competitividade, para uma gama ampla de setores industriais, um novo cluster de inovações promoverá mudanças estruturais de competitividade. A baixa taxa de investimento industrial afastou a indústria brasileira da fronteira tecnológica.
O desenvolvimento e a difusão de tecnologias disruptivas (Indústria 4.0) no Brasil poderão ser dificultados pelo fato de que o país ainda nem sequer internalizou de forma adequada os setores da terceira revolução tecnológica: tecnologias de informação e comunicação (TIC), além de outras áreas tecnológicas importantes como biotecnologia, nanotecnologia etc. São esperados fortes impactos pela difusão dessas novas tecnologias sobre as estruturas produtivas dos países em desenvolvimento. Daí a necessidade de um novo tipo de política industrial com favorecimento fiscal ou creditício muito seletivo e condicionante à inovação tecnológica.
Crédito da foto da página inicial: Ivan Bueno APPA/Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento
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