Onde estão os resultados do teto de gastos?

Publicado originalmente no Sul21

O conhecimento científico avança a partir da teorização e da busca de evidências empíricas. Um cientista não tem problemas em mudar de opinião frente a novas evidências que refutam ou não corroboram ideias pretéritas. Já as crenças dogmáticas são perenes, tidas como verdades indiscutíveis a quem as professa.

A crise de 2008, o crescimento chinês do século 21 e o Corona Crash têm abalado as concepções de política fiscal. Frente a novas evidências, diversos autores e organismos multilaterais têm mudado de posição. No Brasil, entretanto, o debate é “lento”. Temos atualmente quatro regras fiscais. A E.C. 109 estabelece queda de salários reais aos servidores públicos e suspensão de concursos caso a relação Despesas Correntes / Receitas Correntes ultrapasse 95%.

A Lei de Responsabilidade Fiscal impõe um teto para as despesas com pessoal, limita o endividamento e estabelece meta de resultado, o superávit primário. A Regra de Ouro impede o endividamento para financiar despesas correntes, assim, os governos podem endividar-se apenas para a ampliação da capacidade produtiva.

Em 2016, foi aprovada a E.C. 95, ela estipulou um teto geral para as despesas primárias, impedindo o aumento da variação real de despesas federais por 20 anos, mesmo com elevação populacional e da receita fiscal. Com o crescimento populacional ordinário, a regra gera redução per capita das despesas públicas. Na medida em que haja crescimento do PIB, observar-se-á uma redução das despesas do Estado em participação do produto. Nesse sentido, a E.C. 95 não é apenas uma regra fiscal, mas uma decisão de redução do Estado a longo prazo. É sempre válido lembrar: mais de 80% da despesa primária está concentrada em quatro serviços: saúde, educação, previdência e segurança.

Ainda que a Lei do Teto tenha sido aprovada rapidamente após a derrubada de Dilma, os seus arautos argumentavam que haveria redução do endividamento público, controle de preços, crescimento econômico, atração de investimento externo, redução da taxa de juros e manutenção das despesas nas áreas de educação e saúde. A base teórica desta percepção vem de autores como Alesina e Perotti (1995), que argumentavam que uma contração fiscal poderia ter um caráter expansionista por melhorar a expectativa dos agentes e por viabilizar a redução das taxas de juros. Assim, cortes de gastos percebidos como permanentes poderiam gerar nos agentes econômicos a expectativa de redução da carga tributária futura, ampliando o consumo privado e, por conseguinte, a demanda agregada já no momento presente.

A ideia básica é que em período de crise econômica e de aumento da dívida pública, políticas fiscais restritivas podem ter efeito expansionista. A retomada do crescimento econômico aconteceria a partir da redução de gastos. O ajuste nas contas públicas traria efeitos positivos sobre a economia, uma vez que melhoraria a confiança dos agentes econômicos. Ao mostrar responsabilidade sobre as contas públicas, o governo adquiriria credibilidade do mercado e, como consequência, haveria aumento do investimento privado, do consumo e atração de fluxos de capitais externos. É o que Paul Krugman chama de “fada da credibilidade”.

A realidade concreta tem mostrado que as decisões de investimento estão baseadas na demanda dos bens e não na expectativa de uma futura redução de carga tributária e nem em malabarismos intelectuais. A lógica principal da redução de gastos públicos é a de que o papel da política fiscal deve ser a sustentabilidade da dívida pública e a estabilização de preços. Entretanto, o efeito recessivo do corte de gastos pode fazer o nível de endividamento se elevar, ou seja, o efeito inverso ao desejado.

Outro argumento para a redução de gastos é o efeito crowding out. Haveria uma competição pelo crédito e a elevação dos gastos públicos reduziria o crédito disponível ao setor privado, e, consequentemente, restringiria o crescimento. Contudo, na história brasileira, os momentos em que a economia mais cresceu foram justamente os momentos em que as taxas de investimento público eram maiores.

No debate público, os defensores das políticas de austeridade recorrem à analogia entre o orçamento governamental e o familiar. Essa comparação não é apenas puramente simplificadora, mas é equivocada ao desconsiderar três fatores. O primeiro deles é que o governo tem a capacidade de definir o seu orçamento. As famílias não conseguem definir o quanto vão receber, enquanto o governo tem espaço para aumentar a arrecadação.

O outro fato desconsiderado é que as famílias não são capazes de emitir moeda, bem como não emitem títulos em sua moeda e não controlam a taxa de juros de suas dívidas. O terceiro fator que diferencia o governo das famílias é que, quando esse gasta, parte dessa renda retorna sob a forma de impostos. Ao aplicar gastos para gerar crescimento econômico, o governo também está aumentando a sua receita. Dessa forma, a analogia com o orçamento doméstico é mistificação.

Skidelsky e Fraccaroli (2017) mostram no livro “Austerity vs stimulus” que a austeridade não causa o aumento da confiança, mas redução, ao gerar uma recessão. Krugman (2015) mostrou que os países europeus que mais aplicaram a austeridade foram os que menos cresceram entre 2009 e 2013. Breuer (2019) encontrou uma “falácia fatal”, que para ele anula as alegações feitas por quem defende a austeridade expansionista. O autor encontrou um erro estatístico, classificando-o como “reverse causality”. Isto significa que as técnicas estatísticas adotadas não responderam adequadamente aos movimentos cíclicos na razão despesa/PIB.

Em “Rethinking Macroeconomic Policy” Blanchard et. al (2010) argumentam que, ao contrário do que se supunha, tem-se observado, após 2008, que a política monetária contracíclica não tem demonstrado resultados satisfatórios no contexto atual. Nesta medida, o corte de gastos e a consequente redução da taxa de juros não têm sido capazes de atingir os objetivos a que se propõem. Além disso, observou-se que o ajuste fiscal reduziu o produto e o emprego no curto prazo, agravando eventual risco de solvência. (BLANCHARD; ARICCIA; MAURO, 2010).

Alesina et al. (2017) e Alesina, Favero e Giavazzi (2018) passaram a ter conclusões semelhantes. Os autores entendem que ajuste fiscal com base em aumento de impostos é pior do que redução de gastos, embora tenham entendido que ambas as medidas são prejudiciais ao crescimento econômico. Os autores também reconhecem que o ajuste é recessivo no curto prazo.

A crise provocada pela Covid-19 deixou claro a todos que os serviços públicos são fundamentais para o que é mais básico: a vida. Não apenas isso, Estados Unidos e China não hesitaram em seguir o que o FMI tem recomendado para sair da crise: investimento público, políticas assistenciais, tributação sobre os mais ricos. A imensa crise teve que deixar o teto dos gastos suspenso em 2020. Em 2021, algumas despesas tiveram que ser excepcionalizadas por fora do teto dos gastos. Diante de arremedos e de alterações legais, dos cinco anos que vigora, dois exigiram mudanças legais no teto dos gastos. As evidências nos mostram que o teto foi mal planejado e que não é exequível.

Devemos também observar os resultados concretos. O nível de endividamento não depende apenas do déficit público, mas há também uma relação inversa com o crescimento econômico e uma relação direta com a taxa de juros. Ou seja, taxas de crescimento econômico baixas ou negativas contribuem para a elevação da dívida. Nesta medida, a retração econômica gerada parcialmente pelo esfriamento dos gastos públicos contribuiu para que o principal objetivo do corte de gastos não fosse atingido, a redução do endividamento.

Nestes cinco anos, a dívida cresceu, o PIB não. Houve fuga de capitais do Brasil, redução de gastos nas áreas de educação, e, antes da pandemia, também na saúde pública. O nível de preços desacelerou inicialmente, mas presentemente o acumulado em 12 meses passa de 8%. A taxa de desemprego subiu. Já o nível de juros caiu, louro que não nos permite dizer que o fracasso foi completo. Sendo os objetivos principais crescimento econômico e estabilização da dívida, podemos dizer que o insucesso é retumbante.

Temos, portanto, uma regra fiscal que impõe uma decisão de redução do Estado, que deveria ser estabelecida democraticamente e não através de leis pouco compreensíveis ao público geral. Mas não para por aqui, há rotineiros malabarismos legais para escapar da lei do teto, o que demonstra que ela não é viável e, pior de tudo, os resultados prometidos de crescimento econômico, atração de capitais e estabilização da dívida não têm sido observados.

Como em nossa sociedade a racionalidade iluminista impera, nossos policy makers são sensatos e capazes, nossa imprensa nacional não é ideológica e os “especialistas de mercado” não são dogmáticos e sim cientistas com credibilidade, ninguém mais defende a contração fiscal expansionista e nem as regras fiscais que têm asfixiado a economia brasileira, impedido a retomada do crescimento, restringido a oferta de bens públicos, aumentado o desemprego, a desigualdade e o endividamento público.

Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil

Referências

ALESINA, A.; PEROTTI, R. Fiscal adjustments in OECD countries: composition and macroeconomic effects. NBER Working Paper, nº 5.214, 1995.

ALESINA, A; AZZALINI, G.; FAVERO, C.; GIAVAZZI, F.; MIANO, A. Is it the "How" or the "When" that Matters in Fiscal Adjustments? NBER Working Paper, nº. 22.863, 2017.

ALESINA, A. FAVERO, C. GIAVAZZI, F. What do we know about the effects of Austerity? NBER Working Paper, nº. 24.246, 2018.

BLANCHARD, O.; ARICCIA, G.; MAURO, P. Rethinking Macroeconomic Policy. IMF Staff Position Note, 2010.

BREUER, C. Expansionary Austerity and Reverse Causality: A Critique of the Conventional Approach. Institute for New Economic Thinking, Working Paper, nº 98, 2019.

KRUGMAN, P. The case for cuts was a lie. Why does Britain still believe it? The austerity delusion. The Guardian, 2015.

SKIDELSKY, S. FRACCAROLI, N. Austerity vs Stimulus – The Political Future of Economic, Londres: Palgrave Macmilan, 2017.


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