Ocupação São Bernardo: retrato do país na era Temer

Quem vê imagens aéreas do terreno de 70 mil metros quadrados cercado por condomínios de classe média na zona metropolitana de São Bernardo do Campo (SP), um dos polos industriais do país, pode apressadamente achar que se trata de um pátio de montadora lotado de veículos. Olhar mais atento traz o espanto: trata-se de milhares de barracas de plástico preto espalhadas por cada metro quadrado e o “pátio”, na verdade, é a Ocupação Povo Sem Medo em SBC, organizada pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto). Em 1º de setembro eram 500 famílias no local. Hoje, pouco mais de três meses depois, são 12.123 famílias cadastradas, totalizando 33.883 pessoas. Como se produziu tanta desigualdade e pobreza na região mais industrializada da maior metrópole nacional? Quem são essas pessoas?

Ocupação Povo Sem Medo em São Bernardo do Campo (SP)

Essas foram as perguntas que levaram à realização de uma pesquisa sobre o perfil das famílias da ocupação, nos dias 30/09, 1 e 8/10, feita pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Stiftung (FES), Central Única dos Trabalhadores (CUT), o próprio MTST e com apoio do Brasil Debate, lançada oficialmente nesta segunda-feira, 4, na sede da CUT, em São Paulo.

O primeiro dado surpreendente é que 60,4% são trabalhadores assalariados, dos quais 61,5% têm carteira de trabalho assinada (essa média na região metropolitana de São Paulo é de 68%), o que demole imediatamente alguns preconceitos comuns sobre essa população, que seria formada por “desocupados”, “vagabundos”, gente atrás de privilégios, como ressalta o coordenador do MTST Guilherme Boulos. São principalmente diaristas, ajudantes gerais, auxiliares de limpeza, garçons, motoristas, pedreiros, auxiliares administrativos, operadores de telemarketing, porteiros, vendedores ambulantes, cozinheiros, vigilantes.

O universo de desempregados entre eles, como explica Adriana Marcolino, socióloga do Dieese, é de 41,8%, mais que o dobro do verificado na região metropolitana de São Paulo, que em setembro estava em 17,9%. A maior parte é composta por mulheres (53,4%) e negros (59,8%). São famílias pequenas, formadas por, em média, 2,9 pessoas. Crianças e jovens, na sua maioria, frequentam a escola (93,6% entre os que têm 4 e 5 anos de idade; 97,9% na faixa dos 6 aos 14; 83% na faixa dos 15 aos 17 e 24,6% entre 18 e 24 anos). Entre os adultos trabalhadores, 49,3% têm o ensino fundamental completo, 2,4% diploma universitário e 2,6% tiveram ou têm frequência no 3º grau. O rendimento médio do trabalho na ocupação é de R$ 1.137,80, contra uma média de R$2.030,00 na região metropolitana.

A pesquisa mostrou ainda que a maior parte das famílias, 59,4%, foi para a ocupação por causa do alto preço do aluguel (média de R$ 556,97), que passou a não caber no orçamento, ou porque morava de favor (22,2%). Há  ainda 271 famílias que foram despejadas ou que temem que isso ocorra em breve, e 1085 declararam estar na ocupação porque acreditam na luta por moradia. Importante notar que nem todas estão neste momento residindo no local, por falta de estrutura de luz e saneamento, mas ali mantêm suas barracas.

Segundo Adriana, a pesquisa traz um retrato contundente da precariedade em que vive uma faixa significativa de trabalhadores, que ao menor sinal de queda no crescimento da economia perde a capacidade de pagar suas contas básicas. Também revela a pouca penetração das políticas públicas; apenas 30,7% recebem o Bolsa Família, menos de 2% acessam o FIES e o PRONATEC e só 25% se inscreveram, sem sucesso, em programas de habitação. “A adesão à iniciativa do MTST acaba sendo uma forma de tentar conversar com o poder público”, diz.

Para Boulos, “o tema da moradia é um barril de pólvora” no Brasil hoje. “O que vemos é o aumento da crise social e a redução das políticas públicas para habitação ao mesmo tempo”, afirma, lembrando que a faixa 1 do programa Minha Casa Minha Vida, com maior subsídio do governo e voltado para a população mais pobre, foi extinta pelo governo Temer. “O ano de 2018 vai ser o ano das ocupações urbanas”, vaticina.

Reféns da austeridade

Se depender do cenário macroeconômico, a previsão de Boulos vai mesmo se confirmar. Segundo o economista Pedro Rossi, da Unicamp, “não tem recuperação à vista”, ainda que governo e grande imprensa estejam nesse momento comemorando o crescimento do PIB de 0,1 no último trimestre. “Não há nenhuma sinalização de que isso possa mover a economia, assim como o mercado de trabalho apresenta números muito precários. A criação de empregos formais é zero”, diz.

De acordo com Rossi, essa situação foi provocada deliberadamente, porque “o Brasil é refém de uma ideia, a ideia de austeridade, de que é preciso reduzir o tamanho do Estado diante da crise, fazer um arrocho fiscal”. Com isso, explica, se reduz o Estado tanto na sua atuação no plano social como de indutor do crescimento, na esperança de que o setor privado responda investindo. “É uma falácia, um mito, não dá certo em nenhum lugar”.

A orientação econômica desse governo se junta a uma situação histórica no país, onde “nunca foi feita uma política habitacional realmente efetiva”, diz o presidente da CUT São Paulo, Douglas Izzo. “A terra aqui é trabalhada somente na lógica do lucro de uns poucos e não na sua função social”. A ocupação de São Bernardo – que terá seu despejo ou não decidido em reunião do Grupo de Apoio às Ordens Judiciais de Reintegração de Posse (GAORP), nesta segunda-feira, 11 de dezembro – é o retrato sem retoques do Brasil de hoje, em que ter um trabalho assalariado não significa a superação da pobreza extrema.

Crédito da foto da página inicial: Lucas Duarte de Souza/Rede Brasil Atual

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