Uma possibilidade a ser verificada na conjuntura brasileira é que estamos sob a égide de uma antinomia que está se radicalizando . Algo dessa natureza nos leva a um risco de ruptura social com a degradação do reconhecimento mútuo dos membros da sociedade, por consequência, do reconhecimento comum das instituições.
Nem é preciso muita “cautela metodológica” para notar que a parte principal e mais ativa da antinomia, que é a extrema-direita, não reconhece mais (e age contra) a cúpula do sistema judiciário, que num estado democrático de direito seria a última instância para dirimir os conflitos sociais, tendo suas decisões legitimadas pelo conjunto social. Também é evidente a existência, na formatação dessa antinomia social, de sistemas de comunicação paralelos, construindo visões de realidades que não se conversam, pois possuem fatos e verdades próprias. Como, nesse contexto, construir um espaço público de discussão comum, digno desse nome?
Essa é uma das várias perguntas de 1 milhão de dólares que podem ser invocadas na conjuntura brasileira atual. Algumas reflexões precedem essa indagação. Pelas tradições liberais, o sistema midiático convencional (rádio, televisão e imprensa escrita) é, ele mesmo, esse espaço público de discussão. Considerando a complexidade das sociedades contemporâneas essa identificação deve ser questionada, já que poderiam ser listadas várias questões que colocam problemas insuperáveis na representatividade eventual que esse sistema teria, para ser, em termos ideais, o espaço público de discussão. Isso não quer dizer que o sistema midiático não seja um elemento constitutivo desse espaço.
No entanto, o sistema midiático tem imperado no Brasil (para a extrema-direita há muito já não impera e daí um dos aspectos da antinomia) como fosse ele a encarnação absoluta desse espaço público. Essa identificação indevida pode ser explicitada com uma constatação: o sistema midiático, por meio da liberdade de imprensa (liberdade da iniciativa privada de atuar nesse campo, livre expressão da opinião etc.), não consegue realizar um dos direitos fundamentais dos membros de uma sociedade moderna que é o direito à informação. E, não por desvios da ética jornalística, como costuma se pensar, mas sim porque ele não basta para essa missão.
Não estamos aqui eximindo as ações desse sistema de ter praticado várias violações da ética que o regularia. Elas foram graves e não só desmoralizaram de vez qualquer ilusão de o sistema se enxergar como a totalidade do espaço público de discussão, como até seu papel de membro, que reputamos necessário, nessa esfera incontornável de uma sociedade moderna fica comprometido.
O fato de existir um novo sistema midiático arquitetado nas redes digitais produzindo uma realidade própria, cuja matéria básica são as notícias falsas e opiniões excessivamente “criativas”, não vai edulcorar o sistema midiático convencional e nem o livrar da responsabilidade de ter dado início à disjunção, de ter dado início à produção da antinomia social.
A violação dos próprios fundamentos jornalísticos do sistema midiático convencional, de sua deontologia, ainda está por ser reconhecida. Aqui não estamos repisando os velhos estigmas que podem ser dissolvidos nas tertúlias ideológicas do tipo: “mídia partidária”, a “serviço das classes dominantes”, “vinculada aos grandes interesses econômicos” etc. O que o sistema midiático tradicional produziu nos últimos anos da vida política e social no país foi uma verdadeira violação da opinião pública, com direito a uma série de transgressões constitucionais (ah, a presunção de inocência! ah, a defesa da cidadania contra a violência do Estado! ah, o direito de defesa! ah, o repúdio ao linchamento! ah, a ausência ao devido processo legal!!!). Na verdade, a ofensa da ação midiática foi ao Estado democrático de direito, cuja consequência foi a corrosão de sua legitimidade perante a sociedade[1].
Uma decorrência dessa situação é a impossibilidade de uma autocrítica sobre o papel que o sistema midiático teve, de um modo geral. Isso nem é considerado, nem do ponto de vista psicoemocional, porque o risco de reconhecer de que algo teria transcorrido da forma que mencionamos, seria devastador. Reconhecer que o sistema midiático em aliança com uma ala persecutória do Estado (que não se mantinha nos trilhos constitucionais, como estava claro à época) produziu um linchamento público de uma liderança política e de seu partido, resultando numa prisão injusta e num desvario sem par na vida política do Brasil, francamente, não pode ser feito.
Como continuar atuando, disputando mercado, as empresas e os/as jornalistas, com alguma confirmação desse desvio indesculpável? O horror do feito exige que ele seja esquecido e o caminho para autocrítica não existe, pois ele é suicidário. O mesmo se aplica a todos os atores sociais que “embarcaram” na narrativa. Ser cúmplice é grave, estar enganado também é.
Portanto, sem ilusões, pois a forma do sistema midiático convencional de recuperar-se no presente não passa por uma revisão de suas posturas, até o contrário: como não pode ter havido erros, o caminho é reiterar seus métodos de um agir estratégico indisfarçável e mobilizar como instrumento de produção e interpretação das realidades sociais o mesmo repertório de representações cognitivas, repertório congelado insensível a essas mesmas realidades.
Quem poderia em sã consciência endossar que a esta altura da crise brasileira (que é social, é política, é econômica, com cada uma dessas dimensões repercutindo e asfixiando as outras) a discussão mais importante às vésperas de um novo governo fosse o equilíbrio fiscal? Aliás, não é o mercado financeiro que impõe essa discussão, pois o sistema midiático poderia manter no lugar adequado essas reações, assim como mantém no limbo uma série de manifestações importantes de diversos segmentos sociais.
A escolha por dar tanta repercussão a isso é uma aberração cognitiva, aliás, isso não é responsável e nem adulto. Não há, numa sociedade em meio a uma crise tão complexa, nada que tenha esse dom de condensar e pautar todas as nossas preocupações. O sistema midiático assim agindo se afundará numa irrelevância que trará prejuízos a todos nós. No entanto, vê-se pela amostra atual que não se pode esperar que a autorregulação desse sistema o desvie desse caminho desastroso. Esse caminho não levará à restituição de um espaço comum de discussão e, de forma mais ambiciosa, não contribuirá para a formação de um verdadeiro espaço público de discussão, algo fundamental para combater a radicalização da antinomia social que se estrutura no país.
O que fazer então para criar um espaço público de discussão se um dos seus entes fundamentais é prisioneiro de uma blindagem inercial que produz o contrassenso de uma autorregulação sem autocrítica. Um sistema midiático de outra qualidade é necessário, em especial no seu aspecto mais importante que é a força que ele ainda possui de irradiar para boa parte da população suas pautas.
Um dos lados da “antinomia brasileira” está discutindo o “teto de gastos” e o equilíbrio fiscal assim como o papel da “primeira dama” por conta dessa pauta irradiada, produto de uma mesmice temática que se repete automaticamente há anos, sem que haja algum caminho para que pautas mais fundamentais e pertinentes à nossa realidade (econômica, inclusive) venham à luz do dia. E é, nesse ponto, que temos que conseguir uma modificação, que começa a fundar um verdadeiro espaço público de discussão. Se o espaço de discussão deve ser público, não faz sentido que apenas um elemento constituinte desse espaço (o sistema midiático convencional) seja o dono da pauta. Como destronar o monopólio da pauta do sistema midiático? Via redes digitais?
Aqui é que uma heterorregulação do sistema de comunicação privado deveria criar formas. Como? Não é tão difícil de pensar nessas formas de permitir ao público, via seus representantes, que indicasse também suas pautas de interesse como objeto no espaço de discussão. Mais difícil mesmo é convencer que essa questão do que se pauta é um dos nós do problema. Afinal, as realidades falsas e sistemas de comunicação paralelos (de mundos paralelos) não são produtos apenas de fake news, mas são também resultados do modo e do que se escolhe nas realidades como objetos de interesse.
[1] Ver SALGADO; OLIVA in https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla/article/view/8651931
Crédito da foto da página inicial: Reprodução/Brasil de Fato
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