Quase todas as análises possíveis do tamanho do estrago do golpe em qualquer possível projeto de país já foram feitas. Os impactos da Emenda Constitucional nº 95 transcendem os limites do absurdo. Nenhuma área foi poupada dos cortes e isso implica um teto de gastos ainda mais baixo do que o antes imaginado. A contrarreforma trabalhista e terceirização irrestrita foram aprovadas sem dificuldades e a contrarreforma da previdência continua na pauta. A agenda das privatizações avança para sua pauta máxima. Para além da Eletrobras, a venda da Petrobras já foi lançada ao vento por um ministro enquanto o mercado especula que o Banco do Brasil também sairá do controle do Estado.
E quando se pensa em defender desses ataques, o Congresso saca o fim da TJLP e o Governo Federal busca antecipar recebíveis numa operação orquestrada para o desmonte do BNDES. Na mesma blitzkrieg a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprova a demissão de servidores públicos estáveis por critérios para lá de subjetivos, provavelmente para que aqueles que não se submetam politicamente possam ser substituídos por terceirizados apadrinhados da velha política por meio de contratos terceirizados. A leitura do livro da jornalista Naomi Klein sobre a doutrina do choque ajuda a entender o que se passa.
Neste ínterim, houve até quem sonhasse com militares nacionalistas literalmente salvando a pátria, mas o único general da ativa que falou em intervenção militar ainda trouxe um discurso acompanhado da mesma agenda econômica da austeridade e das reformas ultraliberais. A perspectiva de que haja eleições regulares em 2018 se afasta cada vez mais, seja pela via da inviabilização de candidatura que representem qualquer risco ao projeto vigente ou mesmo pela própria não realização do pleito. Não é apontada qualquer alternativa de política econômica para geração de emprego e renda e promoção do bem-estar da população. A alternativa autoritária é natural porque o projeto em curso só se sustenta do tacape.
Não por outra razão, surgem os ataques da direita apoiada por atores estrangeiros[i] que, para desviar da tragédia da pauta econômica, vira suas baterias para uma imaginada ideologia de gênero contra família tradicional. Acusam o feminismo de querer subjugar os homens e denunciam aqueles que defendem os direitos da comunidade LGBTIQ como se quiséssemos transformar todo mundo em gays e lésbicas. Omitem-se diante da pedofilia nas igrejas, templos e lares para ver na arte um ameaça às nossas crianças, ameaça esta que nunca esteve lá. Em realidade, criam um espantalho para que se tenha um bode expiatório para o salário que não chega ao fim do mês e o pão que falta na mesa.
Polanyi, no seu clássico A Grande Transformação, assim colocou:
Na sua luta pelo poder político, o fascismo está inteiramente livre para desprezar ou utilizar temas locais, à vontade. Seu objetivo transcende o arcabouço político e econômico: é social. Ele coloca uma religião política a serviço de um processo degenerativo. No seu processo de ascensão ele exclui apenas algumas emoções na sua orquestração; uma vez vitorioso, porém, ele afasta da sua banda todas as outras motivações, a não ser um pequeno grupo, um grupo extremamente característico. A menos que possamos distinguir perfeitamente entre esta pseudointolerância no caminho para o poder e a intolerância genuína quando no poder, dificilmente poderemos compreender a diferença, sutil mas decisiva, entre o suposto nacionalismo de alguns movimentos fascistas durante a revolução e o não-nacionalismo especificamente imperialista que eles desenvolveram depois da revolução.
É importante, nesta conjuntura, resgatar o que está escrito no Museu do Holocausto nos EUA como sinais precoces do fascismo: nacionalismo potente e continuado; desdém pelos direitos humanos; identificação de inimigos ou bode expiatórios como causa unificadora; supremacia dos militares; sexismo desenfreado; controle de mídias de massa; obsessão com a segurança nacional; governo e religião se misturam; o poder das corporações é protegido; o poder dos trabalhadores é suprimido; desdém pelos intelectuais e pelas artes; obsessão com o crime e a punição; corrupção e compadrio desenfreados; e, eleições fraudulentas. Será que estes sinais não estariam evidentes?
O atual contexto nos força também a resgatar o historiador Robert Paxton e seu texto Five stages of fascism[ii], em que apresenta os cinco estágios para ascensão do fascismo. O texto, que ajuda muito a compreender o que se passa no Brasil de hoje e os perigos do porvir, conclui com três questionamentos que devemos fazer sobre os movimentos neo ou protofascistas que os permitiria superar um estágio nos quais seria impossível detê-los:
1.Eles estão se tornando enraizados em partidos que representam grandes interesses e sentimentos e conseguem ampla influência na cena política?
2.O sistema econômico e constitucional está num estado de bloqueio aparentemente insolúvel pelas autoridades existentes?
3.Uma rápida mobilização política está ameaçando sair do controle das elites tradicionais ao ponto que elas busquem ajuda para manter a ordem?
A força eleitoral de um Jair Bolsonaro, já com um partido pra chamar de seu, parece traduzir uma resposta positiva à primeira questão. A Presidência da República sob o comando de Michel Temer, a representação máxima de um político de reputação duvidosa, com uma linha de sucessão tendo Rodrigo Maia e Eunício de Oliveira mostra que a segunda questão também poderia ser respondida positivamente. O grau de sofrimento imposto à população pelas políticas econômicas vigentes cedo ou tarde resultará em algum grau de ebulição social, o que poderá tornar irreversível o caminho do fascismo no Brasil. É preciso que as esquerdas abram mão dos seus sectarismos e se unifiquem na reação e resistência, antes que seja tarde.
Notas
[i] Ver mais informações na reportagem da Agência Pública, A nova roupa da direita, disponível em <https://apublica.org/2015/06/a-nova-roupa-da-direita/>.
[ii] Disponível em <http://w3.salemstate.edu/~cmauriello/pdfEuropean/Paxton_Five Stages of Fascism.pdf>.
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