Recentemente foi trazida a minha atenção uma entrevista com o professor Samuel Pessôa reproduzida em um blog no Estadão. Na forma de um bate-papo pouco usual, no qual o blogueiro descreve o entrevistado como “gênio” (fato que provavelmente diz mais sobre o entrevistador do que sobre o entrevistado), Pessôa inicia a conversa com uma série de considerações surrealistas sobre a situação política e econômica brasileira, como a de que a acusação da JBS contra Temer teria sido uma forma de o ex-procurador-geral Rodrigo Janot barrar a tramitação da reforma da Previdência.
Em determinado momento, no entanto, Samuel aponta suas armas contra seus adversários prediletos: os “amalucados” “heterodoxos”, particularmente os jovens da Unicamp e da UFRJ. Segundo Pessôa, “uma boa parte da heterodoxia brasileira têm (sic) uma relação religiosa com o conhecimento (…) Eles não olham dados, não constroem modelos que possam ser estimados estatisticamente e não testam as hipóteses deles. Eles acreditam. É um ato de fé.”
Comecemos pela acusação mais recorrente neste tipo de debate, qual seja, a de que economistas “heterodoxos” não olham os dados. Essa fábula preconceituosa pode até conquistar corações e mentes jovens, apaixonadas pela crescente polarização verificada na sociedade e que atingiu a academia, mas falha miseravelmente como reprodução minimamente honesta do trabalho intelectual dos “heterodoxos”.
A confusão tem origem, a meu ver, em questões de cunho metodológico, entre o método histórico-estrutural e o instrumentalismo, que já foi alvo de artigos de Belluzzo e Bastos no debate com Pessôa e Lisboa. No entanto, para além deste debate mais profundo, o que enxergo nesse tipo de afirmação é desconhecimento. Aparentemente, Pessôa não conhece e não lê a produção “heterodoxa” no Brasil e no mundo, bastando para o seu ego a certeza de que ele e seu “clã” são os únicos portadores da verdadeira ciência, enquanto os heterodoxos são meros religiosos que trabalham com fé, sem olhar dados.
Na academia brasileira são inúmeros os artigos de autores (as) tachados como heterodoxos (mesmo que não necessariamente reivindiquem tal pecha) que trabalham com dados, discutindo temas como a questão fiscal, política monetária, política cambial, distributiva, dentre muitos outros campos do debate econômico. O fato de eles chegarem a conclusões que não combinam com a visão que Samuel possui da economia brasileira não significa que não trabalhem bem com dados, mas talvez signifique que Samuel não trabalha bem com letras, tendo em vista sua aparente incapacidade de compreender argumentos diferentes daqueles que defende.
No mercado financeiro, economistas taxados de heterodoxos estão entre os que lideram diversos índices de previsão de variáveis macroeconômicas, dentre os quais ressalto o trabalho de André Perfeito da Gradual Corretora e Rafael Cardoso no Daycoval. Um resultado bastante razoável para quem não olha os dados.
No tema que mais aflige Samuel na entrevista, a origem da recessão de 2015-2016, o entrevistado destila uma mistura de desinformação e mistificação que faria Jair Bolsonaro corar. Em primeiro lugar, afirma que os jovens economistas “amalucados” de Campinas defendem a tese que a crise seria fruto do “ajuste fiscal do Levy”. Gostaria de saber de onde Samuel tirou essa ideia, pois a nota publicada pelo CECON/IE-Unicamp, que está repleta de dados, deixa claro que, em nossa visão, o ajuste fiscal foi apenas um dos componentes de um “choque recessivo”, que inclui um choque monetário, cambial e de preços administrados em um período de desaceleração cíclica.
Em momento algum se afirmou que a crise decorre unicamente da política fiscal pró-cíclica, nem que não existam outros determinantes para além da política macroeconômica que ajudam a explicar a crise. Essa visão simplificada da dinâmica econômica, que exclui da análise questões de ordem estrutural, política, cultural, histórica e internacional, é completamente estranha à tradição heterodoxa, sendo bastante mais afeita a discussões sobre supostas “novas matrizes econômicas”. As recentes análises dos “amalucados” campineiros sempre buscam descrever a complexidade da realidade econômica, indo muito além da discussão de política macroeconômica e discutindo questões estruturais, políticas e internacionais.
Ademais, os defensores do choque recessivo em 2015 (dentre os quais Samuel se destaca) falharam em elucidar como o corte nos investimentos públicos (com seus elevados multiplicadores) somado ao reajuste de preços administrados, à súbita desvalorização cambial (com seus efeitos fiscais deletérios) e ao aumento dos juros, não impactaram positivamente o crescimento, tão pouco melhoraram nossa situação fiscal.
Como se pode observar nos dados da economia brasileira desde 2015, a realidade não ajuda Samuel, que curiosamente, no final de 2014, previa um crescimento do PIB de 0,5% em 2015, apostando no sucesso de um ajuste forte. À época defendia abertamente o aumento do desemprego e a redução dos salários como medidas necessárias para o país, numa espécie de teoria econômica sem gente. O corte de gastos e o choque recessivo ocorreram (basta olhar os dados, que Pessôa teima em ignorar) e a economia entrou em queda livre, só saindo em 2017.
Não cabe, no entanto, um julgamento muito duro sobre Pessôa, pois seu erro foi acompanhado por vários analistas do mercado financeiro e pelo próprio ministro da Fazenda, que acreditavam no sucesso da estratégia de ajuste. Só os “amalucados” heterodoxos achavam que a estratégia daria errado e provocaria uma forte recessão duradoura, mas seus documentos recheados de dados eram certamente frutos da fé, não trazendo consigo a luz da verdadeira ciência econômica.
A exigência que Samuel nos faz parece descabida, uma vez que pede que estimemos algo que nunca dissemos que ocorreu (uma crise derivada de um ajuste fiscal). Mas tal exigência descabida funciona perfeitamente para o autor tirar o foco de questões de conteúdo, uma vez que ele se vê desobrigado a explicar a reversão abrupta de uma série de indicadores a partir de 2015. Quando trata do tema, o faz usualmente de forma bastante atabalhoada, misturando períodos completamente diversos em uma mesma narrativa, chamando de fatores internos variáveis com claros determinantes internacionais e, principalmente, ignorando por completo o período pós-janeiro de 2015, bastando para sua retórica afirmar que tudo se explica pelas más escolhas do passado.
Por fim, gostaria de encerrar este artigo concordando (finalmente) com o professor Samuel Pessôa. De fato, acredito que muitos heterodoxos possuem uma relação “religiosa” com conhecimento, no sentido de que buscam se “religar” a ele sempre que possível, caminhando as árduas trilhas da leitura atenta, da pesquisa rigorosa e da compreensão do diferente. Creio que, desse ponto de vista, essa atitude “religiosa” seja mais adequada do que o culto à ignorância, no qual grassam as certezas graníticas pré-concebidas, os preconceitos e a intolerância com quem pensa diferente.
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