O imperialismo não é uma questão de
escolha para as sociedades capitalistas;
é o meio de sua existência
(Harry Magdoff)
O conflito russo-ucraniano é a expressão mais acentuada da reemergência das rivalidades intercapitalistas. Ela é resultado da própria lógica de expansão do capital financeiro sob a tutela do poder global estadunidense. As contradições daí decorrentes evidenciam o antagonismo latente entre a lógica de conquista do capital financeiro transnacional e a lógica de segurança do sistema interestatal e aceleram a longa marcha civilizacional em direção à catástrofe humana.
O quadro geral
Desde a consolidação do seu poder global, os Estados Unidos avançaram no processo de difusão do império do capital sobre regiões cujos regimes políticos e sistemas econômicos destoavam em relação ao modelo liberal-burguês.
Regiões do leste europeu e da Ásia foram incorporados ao modus operandi do sistema político e econômico ocidental mediante reformas neoliberais, integração no sistema comercial e de pagamentos internacionais e a adoção, quando possível, de regimes políticos liberais.
Se por um lado, a expansão do modelo ocidental representou o alargamento do mercado global e, portanto, das condições de acumulação e valorização do capital, por outro, o processo revelou contradições econômicas e geopolíticas responsáveis pela fissura da própria ordem mundial controlada pelos Estados Unidos e seus subsistemas imperialistas.
No plano econômico, as reformas neoliberais e o padrão de integração dos países periféricos nos parâmetros da globalização não apenas reduziram a capacidade de autodeterminação econômica de seus Estados Nacionais, como acentuaram as crises econômicas e contribuíram para a forte escalada de concentração regional e funcional da renda.
As transformações políticas e econômicas observadas na Rússia desde o final da década de 1990 foram consequências deste processo. Adicionalmente, as estratégias de internacionalização produtiva e a presunção de que o livre mercado pudesse, por si só, desmantelar regimes totalitários, fortaleceram subsistemas econômicos como o do leste asiático, consolidando regimes políticos não liberais e capitalismos de Estado com elevada capacidade de comando e inovação. O modelo chinês foi o caso mais emblemático.
No plano geopolítico, apesar da propalada ideologia do fim da história, os Estados Unidos – e seus subsistemas imperiais – continuaram a adotar a estratégia de expansão de sua política de defesa e segurança nacional, manifestados tanto no plano militar quanto nos planos jurídicos e econômicos.
A internacionalização de seu sistema legal, a ampliação de suas bases militares, o aprofundamento dos sistemas de monitoramento e espionagem, o apoio econômico e militar a movimentos pró-ocidente, as intervenções militares em regimes hostis, o aprofundamento de acordos militares originários da Guerra Fria e o controle da rede mundial de computadores e do sistema de pagamentos globais deram aos Estados Unidos – e seus subsistemas imperialistas – a capacidade de arbitrar as relações econômicas e geopolíticas internacionais.
No plano das relações internacionais, o movimento expansivo do seu sistema jurídico-militar solapou o princípio da indivisibilidade de segurança, inquietando as superpotências militares russas e chinesas.
Este é o quadro que rodeia o conflito russo-ucraniano. A Rússia, fortalecida economicamente e atualizada militarmente, estabeleceu uma linha tênue frente às aspirações de expansão do sistema americano-ocidental russófobo.
As constantes interferências estadunidenses e da OTAN na Eurásia e as diversas rodadas de atração econômica e militar de países próximos e fronteiriços criaram o caldo geopolítico atrativo à reação russa.
Referente à Ucrânia, o golpe de Estado sofrido pelo país e patrocinado pelo ocidente em 2014, o massacre de grupos étnicos russos realizado por militares neonazistas na região de Donbas e a vontade declarada do presidente fanfarrão e populista Zelensky de militarizar nuclearmente seu país a partir de sua entrada na OTAN foram os aspectos determinantes para a intervenção russa no país.
A explicação
No plano analítico mais geral, não restam dúvidas de que a lógica de expansão do capital financeiro sob a tutela do superimperialismo estadunidense criou as condições para a reemergência das rivalidades imperialistas.
Diferentemente do que se imaginava, a incorporação da China no mercado global mediante a entrada maciça de investimentos externos diretos em seu país e sua integração no fluxo de comércio mundial – enquanto exportadora de produtos manufaturados – não apenas fortaleceram o regime de partido único, como criaram condições macroeconômicas para o país realizar, sob o comando do Estado, significantes transformações estruturais.
Enquanto a grande imprensa ocidental e o capital financeiro exaltavam o livre mercado como o responsável pelos baixos preços e incentivavam o consumo de massa, a China usava o excedente oriundo das exportações no mercado mundial para realizar inversões em infraestrutura, estabilizar sua moeda, mimetizar o padrão produtivo das empresas transnacionais alocadas em seu país, modernizar suas forças armadas e seus equipamentos militares, investir em P&D e formar grandes grupos econômicos.
Em duas décadas a China se tornou a segunda maior economia do mundo, a maior participante do comércio internacional e uma das maiores exportadoras de capitais do planeta.
O fracasso das aberturas econômicas e de políticas neoliberais na Rússia na década de 1990 criou bases políticas para ascensão de grupos conservadores e nacionalistas no seio do regime político russo, personificados na figura de Vladmir Putin.
A concentração e verticalização do poder daí decorrente facilitaram a adoção de reformas fiscais e monetárias necessárias à estabilização de sua economia e centralização das instâncias decisórias. Permitiram uma associação mais direta entre Estado e oligarquia financeira na gestão de recursos naturais estratégicos – vista como questão de segurança nacional.
Os maciços investimentos na modernização e a ampliação da capacidade de produção de petróleo e gás fizeram da Rússia um grande player no comércio global. A financeirização das commodities e a maior dependência europeia – e mundial – de recursos energéticos permitiu à Rússia acumular reservas internacionais, acelerar seu crescimento econômico, renovar a sua infraestrutura, reequipar suas forças armadas e investir na modernização de seus equipamentos militares.
A ascensão econômica e militar russa e chinesa é diretamente proporcional à crise do poder estrutural estadunidense e de seus subsistemas imperialistas – Europa Ocidental e Japão.
Os Estados Unidos já não têm vantagem tecnológica em boa parte dos setores econômicos. Suas corporações sofrem concorrência acirrada de empresas estrangeiras com maior capacidade produtiva e gerencial. Sua participação no comércio internacional foi significativamente reduzida a partir da ascensão da economia chinesa. Apesar de ainda relevante, sua moeda vem sendo substituída nas relações comerciais e financeiras asiáticas.
Por seu turno, a China vem ampliando suas relações comerciais e gerenciais – via compra de ativos e empresas – no mundo ocidental e nas áreas de influência estadunidense, deslocando o eixo primário de acumulação do Atlântico para o Pacífico. No plano geopolítico, enquanto os Estados Unidos sofreram sucessivos fracassos em suas estratégias de intervenção na Eurásia, Rússia e China aumentaram sua participação em questões geopolíticas – principalmente ao redor de suas fronteiras – e se tornaram mais ativas e influentes em questões relacionadas à segurança mundial.
A contraofensiva econômica e militar ocidental foi a resposta esperada frente à ascensão russa e chinesa. As retaliações comerciais à China, o banimento de parte de suas corporações no mercado doméstico estadunidense e as denúncias de crimes contra os direitos humanos realizadas pelos Estados Unidos são exemplos da mudança de paradigma geopolítico norte-americana no campo das relações internacionais.
O avanço da OTAN no leste asiático, além de garantir condições jurídico-militares para a expansão do capital financeiro ocidental na região, objetivou conter a presença geopolítica russa e limitar seu poder econômico no que se refere à dotação de recursos naturais estratégicos. A ocupação da Ucrânia é, portanto, a resposta russa à estratégia da OTAN de incorporá-la em sua rede de segurança.
A avaliação
As rivalidades imperialistas são uma tendência imanente do modo de produção capitalista em sua fase monopolista. Elas são consequência da lógica de conquista do capital financeiro, apoiada na lógica de segurança de seus Estados. Elas se reconstituem ao longo da história do capitalismo monopolista como uma necessidade constante, dentro da lógica expansiva e irresistível do capital nas condições de concorrência interestatal. Representam o clímax da contradição entre socialização das forças produtivas em escala global e a intransponibilidade dos Estados nacionais e de seus interesses.
A expansão transnacional do capital financeiro, ainda que tenha fortalecido relações de dominação e dependência entre Estados economicamente avançados e o restante do mundo, também reativou estruturas econômicas de regimes políticos contrários ao modelo liberal-burguês do ocidente.
As consequentes crises econômicas, os desequilíbrios sociais e a presunção estratégica do processo de internacionalização da superestrutura gerencial e produtiva realizada pelas potências ocidentais contribuíram para a ascensão de modos de produção que, ainda que capitalistas, destoam do modelo ocidental – no que se referem ao regime político e ao papel do Estado na economia – e reivindicam, desde então, maior parcela nas relações econômicas e geopolíticas mundiais.
Enganam-se os que pensam que as ações russas e chinesas representam movimentos anti-imperialistas frente à então supremacia imperialista ocidental. Os interesses dos russos e chineses não são outros senão a garantia, por diferentes vias, da reprodução ampliada do seu capital e da manutenção da estabilidade política de suas nações.
Buscam ampliar o espaço vital necessário à expansão dos negócios sob o controle de suas corporações. Não estão preocupados nem com as disparidades socioeconômicas globais, nem com a crise ambiental, tampouco com as condições de vida da classe trabalhadora no mundo e muito menos com a fome e a miséria que assolam metade da população mundial. Neste sentido, representam um bloco imperialista tão destrutivo às condições de vida na terra quanto o imperialismo das potências ocidentais.
A população ucraniana, portanto, não deve nutrir nenhuma esperança frente às ofertas sedutoras oriundas das potências imperialistas. Deve declarar-se independente para reconstituir-se enquanto povo autônomo e garantir condições mínimas de vida aos seus.
O lema paz, pão, terra e trabalho nunca foi tão atual quanto no tempo presente. Na era das rivalidades imperialistas, a lógica de conquista e segurança do capital financeiro e seus Estados reconstrói o fascismo e recoloca a violência como necessidade e a destruição em perspectiva. É o momento em que as forças produtivas e destrutivas do capital se voltam contra a própria humanidade.
Crédito da foto da página principal: Agência Brasil (Putin e Xi Jinping)
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