Publicado no Blog do Demodê (Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades, da Universidade de Brasília)
O ano de 2017 iniciou, segundo alguns analistas e jornalistas, com uma das maiores “crises” do sistema prisional brasileiro dos últimos anos. No entanto, soa minimamente estranho pensarmos e, pior ainda, adotarmos o vocabulário de uma suposta “crise do sistema prisional” tendo ciência de que a população prisional brasileira cresce vertiginosamente desde, pelo menos, o início dos anos 2000 quando tínhamos uma população prisional de 232.755 presos para, em seguida, atingirmos o número de 622.202 presos.
Não há, portanto, uma crise recente do sistema prisional, mas há uma falência da condição humana (para lembrarmos Hannah Arendt) na forma objetiva e subjetiva de lidarmos com as presas e presos no Brasil. Evidentemente, o que há é uma opção sociopolítica de criminalização dos pobres. Portanto, não há uma crise do sistema prisional porque a prisão é a nossa crise. E o que existe é a perda da capacidade especificamente humana de se fazer, sentir e modificar a realidade do sistema prisional e de todos que o cercam, dentro e fora, das prisões. E porque chegamos a este contexto de superlotação carcerária? Contexto da perda da capacidade de reconhecimento do preso como ser humano com “direitos a ter direitos”?
Três elementos, no meu entendimento, compõem o atual cenário de superpopulação prisional no Brasil: i) a concepção brasileira de que direitos humanos de presos comuns são privilégios de bandidos; ii) a opção da estatalidade (desde as políticas e leis aprovadas até os funcionários do sistema da justiça criminal, especialmente, os que aplicam as penas) de prender cada vez mais nos últimos anos à despeito da criação de penas alternativas à prisão e de mecanismos alternativos de justiça; iii) a atual lei de drogas – lei 11 343 de 2006 – que trouxe como principal implicação um hiperencarceramento por drogas (já debatida em minha pesquisa de doutorado na USP1), que não trata o usuário como saúde pública, mas sim como questão de prisão. Juntos estes três elementos transbordam o nosso copo, não de água, mas de prisão. Vejamos:
1- “Direitos Humanos é privilégio de bandidos” foi uma expressão no Brasil cristalizada especialmente após o regime ditatorial. Teresa Cadeira2 nos mostra que, na ditadura, quando os direitos humanos eram reivindicados para os presos políticos – muitos oriundos da classe média – havia uma ampla legitimidade na defesa destes direitos surgindo nesse contexto, inclusive a Anistia Internacional no Brasil. Após a Constituição Federal de 1988 a prisão de criminosos “comuns” no Brasil (e a legitimação da violação de seus corpos) sempre teve amplo apoio da população. Programas de televisão e de rádio variados estimulam a violência e mostram muitas das operações policiais dando, até hoje, o tom daquela velha ideia totalitária divulgada no senso comum “tem dó, leva esse vagabundo pra casa”. No fundo, isto só reforça que boa parte dos brasileiros não quer, nem admite, a ideia universalista de direitos para todas e todos. A concepção hierárquica de espaço social, de pessoalidade via nosso passado colonial reconfigura a nossa tradição autoritária-inquisitorial insistentemente: o indivíduo cada vez mais distante das questões do mundo público é o indivíduo totalitário. Que deseja além do aprisionamento massivo dos pobres, o extermínio destes como vimos nas últimas rebeliões que dão o tom da falência de nosso sistema prisional e da condição não-humana de nossos presos.
2 – A opção do Estado brasileiro tem sido prender cada vez mais, com leis mais punitivas. Leis aprovadas pelo parlamento nos últimos anos (Lei 9677 de 1998; Lei 10.217 de 2001; Lei 8072 de 1990; Propostas de Redução da Maioridade Penal; Lei de Drogas; etc) são alguns dos exemplos de dispositivos aprovados pelo parlamento na lógica do “subir para descer”. Acontece que, como demostram inúmeras pesquisas científicas (como a minha dissertação de mestrado3) o aumento a pena de prisão não possui relação com a diminuição de um determinado crime. Pelo contrário, no caso da lei de drogas e dos crimes hediondos observa-se que o país possui um número altíssimo de homicídios por ano, 56.000. Enquanto a população carcerária cresce em função dos crimes não violentos, especialmente as infrações por drogas. Entre 2005 e 2013, a população carcerária dos delitos relacionados às drogas aumentou 345%, saltando de 32.880 para 146.276 presas e presos por tráfico. Além dos legisladores, compartilham dessa crença muitos dos operadores do sistema de justiça criminal que apoiam e aplicam penas altas para crimes sem violência e com pequena quantidade de drogas, como ocorre com inúmeras incriminações por drogas na capital paulista. Do total dos 622.202 presos no Brasil, quase metade está encarcerada em condições desumanizadoras por crimes sem violência (28% tráfico e 13% furto). Crimes estes que permitem muitas vezes que os operadores da justiça criminal apliquem medidas alternativas à prisão;
3 – A política de “combate” às drogas (o chamado paradigma proibicionista) mostrou-se um fracasso nos EUA, Canadá, Portugal e diversos outros países (como nosso vizinho Uruguai) que perceberam que o número de infrações nas cortes e de condenações era alto por infrações relacionadas às drogas. O que superlotavam as prisões restringindo o investimento em políticas sociais, e pior ainda, que quanto mais se investia belicamente na “guerra às drogas” mais aumentava esse número de presos por drogas. O raciocínio (ainda bem que chegou, a tempo) é que não há qualquer relação de causalidade (estatisticamente comprovada) entre aumento de penas, investimento em repressão ao comércio e uso de drogas e diminuição da venda e do uso de substâncias consideradas ilícitas.
Assim, a regulação da maconha nos estados americanos, a aprovação da regulação estatal da maconha no Uruguai, a descriminalização das drogas em Portugal trouxeram rapidamente ganhos políticos e humanos: em Portugal, as pesquisas realizadas após 10 anos da descriminalização das drogas, ocorrida em 2000, demonstram que o uso de drogas ilícitas reduziu entre usuários problemáticos de drogas e adolescentes, pelo menos desde 2003, e houve redução do número de infratores por drogas no sistema de justiça criminal. No Canadá4, com a aprovação da maconha medicinal para uso próprio desde 2001, com o investimento maciço em políticas de redução de danos, por exemplo, a methadonemaintenancetherapy é uma modalidade de tratamento neurobiológico destinado à substituição de um usuário que utiliza heroína, por exemplo, por um opiáceo menos danoso, a metadona. Com supervisão médica, a terapia de substituição de opiáceo (methadonemaintenancetherapy) é fruto de uma abordagem multidisciplinar que inclui: médico prescritor, distribuição farmacêutica e provisão de apoio psicossocial ao usuário. O resultado é que do total de presos no Canadá 3,2% estão presos por tráfico de drogas e 4,3% por posse de drogas.
Se compararmos rapidamente com o Brasil, observamos que após o fim a pena de prisão de usuários a partir do ano de 2006 – com a sanção a lei 11.343 de 2006 – o número de presos por drogas saltou de 32.880 para 146.276. De 799 pessoas incriminadas. Em minha pesquisa de doutorado analisei 799 incriminações feitas para polícia militar na cidade de São Paulo. Desse total, 405 das pessoas incriminadas portavam de 0,1 até 7 gramas. Nesse cenário de encarceramento massivo dos pobres, a metáfora que utilizei para descrever a atual política de drogas brasileira é a metáfora do copo meio vazio e meio cheio: vazio de saúde pública e cheio de prisão. A prisão, portanto, que é a crise. Crise moral da sociedade com os presos. Crise com a condição não humana dos presos. Crise com o extermínio de presos dentro de instituições estatais. Crise que conhecemos em nossas visitas nas unidades prisionais com a Pastoral Carcerária já há muito tempo. Crise que os projetos de leis duras oriundas de muitos parlamentares e que muitos operadores do sistema de justiça criminal insistem em agravar, punindo mais e mais. Crise que é, enfim, dada pela miopia da sociedade com o sistema prisional. Precisamos, logo, é trocar os nossos óculos.
1 CAMPOS, Marcelo da Silveira. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal em São Paulo. 2015. Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2015
2 CALDEIRA, Teresa P. do Rio. 2000. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp.
3 CAMPOS, Marcelo da Silveira. Crime e Congresso Nacional: uma análise da política criminal aprovada de 1989 a 2006. Rev. Bras. Ciênc. Polít., Brasília , n. 15, p. 315-347, Dec. 2014
4 CAMPOS, MARCELO DA SILVEIRA. Canadá e Viena: mudanças globais nas políticas de drogas?. Correio Braziliense, Brasília, p. 11 – 11, 31 mar. 2014.
Crédito da imagem da página inicial: Wilson Dias/EBC
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