Massificação da ideologia dominante

O período vivenciado entre 2004 e 2011 foi de ganhos econômicos e sociais para o Brasil. Houve crescimento econômico superior à média das duas décadas pregressas, redução das desigualdades, elevação das reservas internacionais, aumento do emprego, elevação da renda média etc.

No final de 2011 e ao longo de 2012, frente à popularidade elevada da presidente Dilma e das oscilações na economia internacional, houve uma tentativa de alterar a política econômica, particularmente a política monetária. Nesse período, a sensação de “bem-estar” estava relativamente bem sedimentada.

Inesperadamente, uma ruptura no clima social se estabelece com as jornadas de junho de 2013. O movimento popular buscava melhorias nos serviços públicos. Mesmo que em seu surgimento as manifestações tenham sido organizadas por grupos de esquerda, os setores liberais e conservadores foram perspicazes em cooptar o sentimento que o movimento de rua trazia.

Desde então, é transpassado nas entrelinhas que as circunstâncias são negativas, ainda que concretamente nada tivesse se alterado de forma substancial até então, a não ser a redução do ritmo da atividade econômica. Nos principais meios de imprensa, o enfoque em problemas pontuais era destacado sem uma análise ampla sobre as questões.

Em linha semelhante, a organização da Copa do Mundo no Brasil em 2014 obteve uma crítica sistemática, seja de grupos sociais, seja dos veículos de comunicação. Ainda que os custos da Copa fossem ínfimos ao lado do que se gasta com serviços públicos, a lógica de senso comum, ou seja, sem base em elementos científicos, afirmava a existência de ineficiência na gestão pública, desperdício e, adjacentemente, descrédito com os políticos. Cumpre frisar que a organização da Copa foi bem-sucedida.

Esses dois momentos marcaram inflexões na percepção pública: as jornadas de junho de 2013 e a realização da Copa do Mundo em 2014. Tais situações foram sucedidas por uma enxurrada de análises pobres, desqualificadas e de senso comum. A despeito do baixo nível analítico, esse prisma se torna majoritário e se dissemina.

Há, assim, uma difusão de pessimismo sobre a situação do País, pouco baseada em evidências quantitativas, mas que hegemoniza a “opinião pública”. Paralelamente a essas ocorrências, o julgamento do “mensalão” (2012) e a “Operação Lava Jato” (2014) cristalizam a perspectiva equivocada de que os impostos são majoritariamente desviados e a saída para tal problema está na redução das atividades estatais.

O discurso vulgar e despolitizado “contra a corrupção” é meramente um artifício ideológico para instituir um projeto político com uma determinada visão sobre a sociedade e sobre a economia. Trata-se de uma visão falaciosa que generaliza casos pontuais, ignora e/ou naturaliza a ação estatal na distribuição da renda, sobretudo por meio de serviços públicos.

Ao contrário do que se imagina corriqueiramente, serviços públicos como educação, saúde e previdência são recentes em termos históricos, custam caro e trazem benefícios não tão visíveis como a redução da mortalidade infantil e a ampliação da expectativa de vida.

Do total da carga tributária do Brasil, 35,8% em 2012, por exemplo, 3,84 pontos percentuais foram destinados para a saúde (BRASIL, 2015a), 6,0 pontos percentuais foram para educação (INEP, 2015).

A previdência é centralizada no Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), porém existem também organismos estaduais e municipais. Considerando apenas o INSS, o gasto em percentual do PIB é de 7,7 (BRASIL, 2015b). A soma dessas três rubricas perfaz 17,54% do PIB, o que representa 49,0% da arrecadação. Os juros nominais despendidos pelo setor público, em 2012, foram de 4,9% do PIB.

Ao lado dos argumentos vulgares acerca da carga tributária brasileira, há comparações com os serviços públicos de outros países com renda per capita muito superior à brasileira. Ou seja, o discurso de senso comum que visa a deslegitimar o Estado ignora a história do país e a realidade socioeconômica.

A história mostra que a redução da ação estatal aprofunda desigualdades, amplifica conflitos e tensiona a sociedade. Piketty (2014) explicitou sobretudo o primeiro ponto. Ao mesmo tempo, um Estado menor atende a interesses específicos, vale citar, há um segmento social que não precisa de saúde, educação e previdência públicas.

Parece ser um dos desafios do campo progressista atualmente desnaturalizar a ação do Estado por meio do resgate histórico de sua configuração, desobscurecer seus benefícios e qualificar o rebaixado debate de “ineficiência generalizada”.

Referências

BRASIL. Ministério da Saúde. Financiamento Público de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2013. Disponível em http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/financiamento_publico_saude_eixo_1.pdf. Acesso em 01 jul. 2015a.

BRASIL. Ministério da Previdência Social. Dados Abertos – Previdência Social – http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2015/03/AEPS-2013-v.-26.02.pdf. Acesso em 24 ago. 2015b.

INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA (INEP). Investimentos públicos em educação. Disponível em http://portal.inep.gov.br/web/guest/estatisticas-gastoseducacao-indicadores_financeiros-p.t.i._nivel_ensino.htm. Acesso em 01 jul 2015.

PIKETTY, Thomas. Capital in the twenty-first century.Londres:  The Belknap press of Harvard University press, 2014.

 

 

 

Comentários

3 respostas para “Massificação da ideologia dominante”

  1. Avatar de Canario da terra
    Canario da terra

    Ótima análise do professor sobre o verdadeiro cenário, de forma dinâmica e não fotográfica da economia política.
    Dentre os interesses elencados, gostaria de incluir aqueles externos, esperançosos de novas privatarias e o neo-colonialismo imperialista.

  2. Avatar de flavio
    flavio

    “tenciona” (penúltimo parágrafo): seria tensiona?

  3. Avatar de Antonio Elias Sobrinho
    Antonio Elias Sobrinho

    É inegável que durante o período dos governos petistas, pelo menos até 2012, houve avanços sociais significativos e investimentos expressivos nos serviços públicos. Isso é tão evidente que, nas últimas eleições, nenhuma candidatura significativa se colocou contra a tendência geral. Pelo contrário, todos diziam que iam continuar e aprofundar o que vinha sendo feito.
    É também inegável, que um discurso rasteiro, disseminado sobretudo pela mídia, se alastrou rapidamente a partir daí, e ganhou setores significativos da população sobretudo das camadas médias, contra a inoperância dos poderes públicos, das relações promíscuas entre estes e as grandes empresas, grande parte delas pouco transparentes, conforme vieram provar os vários processos em andamento.
    Além disso, também é verdade que os governos em geral e as principais instituições, sobretudo os partidos políticos e as principais entidades de representação da sociedade civil, nada fizeram para desmistificar esses discursos, pelo contrário, ou corroboraram com suas práticas ou se esconderam com medo do vendaval.
    Finalmente, quero dizer que a ação dos elementos e seus representantes no sentido de desmantelar a arquitetura de poder,montada pelo PT ou pelo menos inverter, é legítimo dentro de um sistema democrático aleijado como este, formado prioritariamente de coalizões circunstanciais e de projetos de curto prazo.
    Agora, as coisas ficaram mais complicadas, sobretudo para o cidadão comum, que assiste o governo embrulhado com os projetos dos adversários numa tentativa desesperada de se manter no poder a qualquer custo.

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