Mais uma conquista de Eva: O futebol?

Na semana em que se comemora o dia internacional de luta das mulheres, e ainda sobre debate recente quanto a representação destas no marketing dos clubes de futebol, vale uma reflexão, mesmo que sucinta, sobre a luta das mulheres no mundo da bola.

O que se pretende é um breve ensaio com as minhas percepções enquanto mulher e torcedora (do Atlético) que mostram que a luta das mulheres por representatividade no esporte mais popular do mundo só está começando.

Parte do debate ao qual me referi foi suscitado no evento de apresentação dos uniformes de um dos maiores e mais tradicionais clubes de futebol do país para a temporada de 2016. O evento teve notória repercussão nos meios de comunicação tradicionais e nas redes sociais e tal visibilidade se deve a uma ingrata surpresa, um verdadeiro pênalti: “manto sagrado”, como se costuma dizer no futebol, foi acompanhado no traje das mulheres por lingeries e peças de biquíni.

Fora das quatro linhas, o fato foi alvo de contundentes críticas, sobretudo por parte de mulheres torcedoras de diversos clubes, que se posicionaram por meio de notas de repúdio e posts em redes sociais. Contudo, a jogada não morreu por aí. O gol contra reacendeu a importante discussão sobre o lugar da mulher no futebol. Não na referida ocasião, mas em tantas outras, podemos dizer que, para nós, não sobrou nem o banco de reservas. As mulheres não estão na relação do professor.

As respostas – de torcedores, jornalistas e dirigentes, às críticas das torcedoras vieram na velocidade de um falso 9, mas pouco surpreendentes como um esquema tático já batido.

Vale dizer que não se trata de cercear a liberdade das mulheres com argumentos moralistas e conservadores (também, a nossa luta não tem a ver com pleitear desfiles com homens de sunga. Por favor!), tampouco de questionar o trabalho de modelos.

Ao contrário, a proposta é de desconstruirmos a representação objetificada, hipersexualizada e subserviente das mulheres no futebol, o que a figura de mulheres de lingerie e biquínis sinaliza com precisão. O que eu quero dizer é que no futebol as mulheres ainda são representadas como centro do objeto da sexualidade masculina. Isto é, um adorno, um enfeite ou um objeto a ser usado e também, vendido.

A publicidade específica dos clubes está longe deter o “monopólio da objetificação das mulheres”. Nota-se que nas propagandas e peças de publicidade dos principais patrocinadores de clubes, seleções, campeonatos e transmissões de torneios comumente as mulheres são parte do arsenal de consumo. Indo e vindo, conforme as estações do ano, a servir uma bebida gelada e a ser aquilo que caracteriza o objeto máximo do consumo masculino.

Trocando em miúdos: para esses segmentos, mulheres “gostosas”, servis e apatetadas vendem. Além de um “tiro no pé”, a estratégia marqueteira da cultura futebolística representa um modelo retrógrado de propaganda e só reforça o obscurantismo que insiste em caracterizar a relação do esporte com as mulheres.

Na era do marketing em que as marcas valorizam a aproximação com a identidade de seus consumidores, dar enfoque a mulheres hipersexualizadas é uma estratégia quase medieval.

Nesse sentido, publicidade e também as torcidas alimentam esse triste traço da cultura do futebol. Os mesmos meios são facilmente observados no cotidiano das torcidas. Os cânticos, as trocas de provocações entre torcidas e mesmo camisas e bandeiras das organizadas utilizam de elementos tidos por femininos na nossa sociedade para depreciação do adversário.

O time que entra de “salto alto” é surpreendido por uma derrota. É a torcida adversária que se comporta como “mulherzinha”. É quem chuta como “uma moça” que perde o gol. Incitar o assédio e a violência contra as mulheres da torcida do time adversário é corriqueiro, quando não sobram xingamentos até para as companheiras dos jogadores.

O tema espinhoso também invade o jornalismo esportivo. Embora possamos dizer que esse cenário vem mudando de modo positivo nos últimos anos, ainda há muito campo para correr. Já contamos com âncoras mulheres nos principais programas esportivos da TV aberta e observamos uma crescente no número de jornalistas, repórteres e comentadoras de futebol.

Isso é muito bom! Contudo, além dessa participação ser destoante em referência a quantidade de homens que ocupam esses lugares, o modo como as mulheres profissionais do jornalismo esportivo se posicionam ainda é diferente e, por vezes, inferiorizado em relação aos colegas homens.

Já entendemos que matérias sobre a vida cotidiana e familiar dos jogadores e sobre histórias emocionais que envolvem as torcidas são das mulheres. Porém, a face mais perversa que se revela nesse cenário é quando a opinião das jornalistas do esporte é criticada.

Aos homens, críticas à opinião, para as mulheres um festival de xingamentos misóginos e exposição da vida sexual e afetiva das mesmas. Sempre lembrando que aquele não deveria ser lugar de mulher.

Em campo não são raras as narrativas de que as jogadoras devem ser “bonitas e femininas” para que consigam patrocínio. Aliás, patrocínio no futebol feminino é ínfimo, para não dizer nulo.

Em “Mulheres e Futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades”, Silvana Goellner descreve a trajetória do futebol feminino no Brasil e, se inicialmente, em meados da década de 1940, as mulheres enfrentavam os argumentos biológicos de que não eram capazes de bater uma bolinha, em 2015 enfrentam barreiras de patrocínios, torneios, incentivos de clubes e estrutura para a profissionalização da carreira.

Em número, enquanto uma das experiências mais bem-sucedidas no Brasil de time feminino, o caso do Sereias da Vila, operava com um orçamento anual de R$ 1,5 milhão. Valor pequeno perto da folha de pagamento mensal dos times masculinos dos grandes clubes.  Segundo reportagem de Almir Leite para o jornal O Estado de S.Paulo em 2015, o salário máximo pago às jogadoras dos clubes brasileiros é de R$ 2.500,00.

O futebol carrega em si um frenesi particular, um sentimento que é todo seu. Uma paixão que passa de mães para filhas, pais para filhas, mães para filhos e que une mulheres nos bares, nas ruas, nas arquibancadas e nas casas.

As discussões sobre o lugar da mulher não tornam o futebol “ chato”, “ politicamente correto” ou menos encantador. Pelo contrário, aquilo que nós mulheres e homens amantes do futebol carregamos a vida toda conosco pode transformar o esporte numa importante ferramenta para a liberdade e o empoderamento.

Sabe aquela liberdade que a gente sente quando o time da gente numa final de Libertadores faz o segundo gol necessário nos últimos minutos da etapa derradeira vai para a disputa de pênaltis e conquista o título mais importante em mais de um século de história? Bem essa.

As mulheres querem se ver no futebol. Como são: torcedoras, atletas e profissionais da informação. As mulheres querem torneios bem estruturados para jogar, profissionalização, centros de treinamento descentes. As torcedoras querem ir a todos os lugares sem assédio, sem xingamentos, sem medo.

Quando os clubes apresentarem os uniformes de 2017 eu quero saber como a minha avó, a minha mãe, as minhas amigas e a minha sobrinha ficariam vestindo as camisas. Eu quero vê-las ali, representadas! Nós queremos vê-las no que se tornou sagrado para nós, mas que nunca, nunca deveria trajar os símbolos da nossa opressão.

Referências

GOELLNER, S. V. (2015). Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física Esportiva .

Leite, A. (2015). Salário mínimo da seleção feminina no Brasil será de 9 mi. O Estado de S.Paulo

OXENHAM, G. (2015). Pele With a Skirt’: The Unequal Fortunes of Brazil’s Soccer Stars. The Atlantic.

 

Crédito da foto da página inicial: Rafael Ribeiro/Divulgação CBF

Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.