Inclusão interrompida na educação superior

A tese de doutoramento de Ana Luíza Matos de Oliveira, “Educação Superior brasileira no início do século XXI: inclusão interrompida?”, foi defendida no IE-UNICAMP em fevereiro de 2019. Sob orientação do Márcio Pochmann e coorientação do Pedro Rossi, colegas do IE-UNICAMP, eu me entusiasmei a lê-la logo de início, não só por ter sido escrito por talentosa pesquisadora, mas por conter 45 gráficos e 75 tabelas.

Aprendi com minha mentora, a professora Maria da Conceição Tavares: – “Nunca diga nada a respeito da sociedade brasileira sem apresentar dados comprovantes do dito. É a maneira de superar os argumentos ideológicos dos adversários.” Depois, iniciando minha carreira profissional no IBGE, esta lição ficou sedimentada.

Historicamente, segundo a Ana Luíza, “o acesso à educação superior no Brasil foi altamente restrito à elite econômica, majoritariamente branca, das unidades da Federação mais ricas. No entanto, entre 2002 e 2014, período de crescimento econômico e de políticas voltadas para a ampliação das instituições/vagas de educação superior e para a inclusão social, houve importantes mudanças nesse setor”.

Então, ela lança as perguntas-chaves a buscar respostas em sua pesquisa. Qual a extensão dessas mudanças? O Brasil avançou no sentido da “deselitização” da educação superior? Como as políticas públicas contribuíram para essas mudanças? Quais as perspectivas, considerando a reversão de parte dessas políticas?

Seu objetivo é analisar o perfil dos estudantes de graduação brasileiros em termos de renda, raça/cor e região, levando em conta as políticas públicas aplicadas no início do século 21 (2001 – 2017).

No capítulo 1, analisa alguns mecanismos capazes de, no capitalismo, reproduzir ou interferir nas desigualdades. Discute também a relação das múltiplas desigualdades com o acesso aos direitos sociais no Brasil. No capítulo 2, identifica e apresenta as políticas públicas da educação superior brasileira, em especial no início do século 21. No capítulo 3, analisa as mudanças no perfil dos estudantes da educação superior, mas salienta a possível mudança de tendência em 2015. Daí compara a expansão da educação superior brasileira recente à indiana em termos da desigualdade de acesso. Finalmente, no capítulo 4, apresenta fatos recentes, dentro da política econômica de austeridade, capazes de colocar em risco o ciclo virtuoso de inclusão social em curso na educação superior brasileira.

A hipótese levantada para ser defendida como tese ao apresentar, dados, informações e evidências, é ter havido uma democratização no acesso à educação superior no início do século 21. No entanto, ela está sendo ameaçada desde a adoção da austeridade fiscal.

Sua pesquisa revela uma convergência entre o perfil do estudante em direção ao perfil médio da população brasileira, o que configura uma democratização do acesso à educação superior, embora ainda persistam imensas desigualdades sociais a serem superadas. Isto decorre de uma combinação virtuosa de crescimento econômico, redução de desigualdades na renda do trabalho e políticas públicas voltadas para maior acesso popular às universidades.

No entanto, com a volta da Velha Matriz Neoliberal em 2015 e o golpe parlamentarista-judicial no ano seguinte, esse processo de inclusão ficou sob ameaça por políticas de austeridade fiscal, em especial a Emenda Constitucional 95, no governo golpista. Com a eleição do capitão de extrema-direita, está ocorrendo reversão em grande parte das políticas públicas responsáveis pelo processo de inclusão. Seu ódio à esquerda só é superado pelo ódio maior e oposto. Ideologia é seu mote – e não o bem-estar público.

Ao se referir à inclusão social e democratização do ensino superior, na tese, Ana Luíza se refere ao processo de aproximar socioeconômico, racial e espacialmente o perfil dos estudantes universitários ao da população brasileira, reduzindo as desigualdades de acesso às universidades. Uma dúvida quanto à democratização do acesso é se se trata apenas de uma massificação da quantidade de estudantes ou se é acompanhada também de uma melhoria na qualidade do ensino superior brasileiro.

Ela considera a democratização do acesso em si como um avanço nas políticas públicas. Nesse sentido, iguala estudantes de graduação independente da instituição à qual tem acesso, se é pública (25%) ou privada (3/4). Assim, não entra na discussão da qualidade da educação. Seu argumento é essa discussão ser restrita ao campo da educação, então, “sobre a qual teria menos, como economista, a contribuir”.

Discordo. Pelo menos na nossa área de conhecimento, temos condições de avaliação da qualidade do ensino. No apêndice do meu livro eletrônico “Ensino de Economia na Escola de Campinas: Memórias”, apresento dados do Censo de 2010, onde se registram 234.287 graduados, 18.341 mestres e 5.410 doutores na área de Economia. Entre os graduados, 59.346 são presumivelmente aposentados ou desempregados. A participação dos mestres e doutores é maior e crescente nas faixas etárias mais jovens.

No total, o curso de Economia possui 49,4 mil alunos matriculados em todo o país. No período de 2010 a 2015, foram 36,6 mil concluintes, ou seja, a média de 6,1 mil / ano. Se essa fosse a média nos últimos 35 anos (e todos os concluintes exercessem a profissão), estariam na vida profissional ativa cerca de 213,4 mil economistas.

Em 2015, número de alunos matriculados atingiu 50,4 mil, o número de ingressantes, 12,6 mil, e o número de concluintes, 6,23 mil. Para comparação, nesse ano, o IE-UNICAMP tinha 547 matriculados e teve 91 concluintes com idade média de 22 anos. Pelo Ranking Universitário da Folha de S.Paulo, é a melhor graduação na área do Brasil.

A questão da excelência do ensino diz respeito à necessidade (ou não) de oferta de tantos economistas no mercado de trabalho. Parece estar havendo um descolamento entre oferta de vagas, principalmente por parte de Instituições de Ensino Superior privadas, e demanda pelo curso. Coordenadores de ensino têm se queixado da queda da demanda de vestibulandos pelo curso de Economia. Não é o caso do IE-UNICAMP.

Ana Luíza se apoia na literatura para dizer: “é difícil definir o que seja qualidade na educação como um todo”. No Brasil, foi percebida das seguintes formas ao longo da história: primeiro, a qualidade determinada pela oferta insuficiente; segundo, a qualidade percebida pelas disfunções no fluxo do ensino fundamental e; terceiro, a qualidade medida por generalização de sistemas de avaliação, baseados em testes padronizados. Esta terceira forma seria a mais usual medida de qualidade no país hoje.

O foco de sua tese é a estrutura de oferta da educação, e não sua demanda por parte do mercado de trabalho e da estrutura produtiva. Os dados de sua pesquisa mostram como o acesso às IFES se transformou em termos de idade, cores da raça humana, renda e regiões no período inicial do século 21. Assim, em 2014, as IFES estavam se tornando mais parecidas com o restante da sociedade. Houve uma redução das desigualdades no acesso aos direitos sociais, em especial à educação superior.

Em 2001, o nono décimo na pirâmide da distribuição da renda representava 28% dos estudantes, passando a 17% em 2015. Já o último decil, o dos mais ricos, cai de 40% para 18% do total de estudantes. Estudantes com renda per capita domiciliar entre 3 e 5 SM eram a maioria em 2001 (55%) e passam a ser 15% dos estudantes. Por sua vez, os estudantes sem rendimentos ou com renda per capita de até 1 SM eram 7% do total em 2001 e passam a 32% em 2015. Já os estudantes com renda até 2 SM passam de 27% a 68% dos estudantes entre 2001 e 2015. Em 2001, 9% dos estudantes provinham de domicílios com renda de aluguel. Em 2015, este era o caso de menos de 4% dos estudantes. Essa mudança ocorrida na educação superior brasileira, em especial na pública, está contribuindo para derrubar a justificativa neoliberal para cobrar mensalidades dos estudantes, sob alegação deles serem “filhos-dos-papais ricos”.

Ana Luíza reconhece uma limitação em sua tese advinda do fato de não haver um acompanhamento dos graduados ingressantes no mercado de trabalho. Daí não investigou como o acesso à educação superior interfere nas desigualdades a partir do mercado de trabalho. Estas questões, relacionadas também ao background classista familiar e às discriminações diversas sofridas pelos indivíduos no mercado de trabalho, inclusive em termos de gênero e cor, não eram objetivos de sua tese.

Mas os dados do desemprego por classe social, considerando faixas de renda familiar com valores de 2017, dão evidências a respeito. O desemprego subiu de 13,9% em 2008 para 30,7% na Classe E [até R$ 1.100 ou 18,6%] em 2018, de 8,3% para 17,7% na Classe D [R$ 1.100-R$ 1.819 ou 16,7%], de 5,4% para 12,3% na Classe C [R$ 1.819-R$ 7.278 ou 54,4%], e apenas de 3,7% para 3,8% na Classe B [R$ 7.278-R$ 11.000 ou 5,3%] e de 3,1% para 3.3% na Classe A [acima de R$ 11.001 ou 5%].

Ao completar o ensino superior, quem exerce a profissão na qual se formou já entra na faixa dos 10% mais ricos. Entre 90% e 95% recebem rendimentos médios de R$ 5.214. Com um doutorado passa a integrar a faixa entre 95% e 99% com média salarial de R$ 9.782. Com todos os títulos acadêmicos poderá ingressar no 1% mais rico ao receber em torno de R$ 27.213.

Os fatos político-econômicos recentes, em especial desde 2015, demonstram que o ciclo da cidadania, iniciado em 1988, pode ter acabado? Os universitários não reagirão contra isso?!

Acesse a íntegra da tese clicando aqui .

Crédito da foto da página inicial: Marcello Casal/Agência Brasil

Comentários

Uma resposta para “Inclusão interrompida na educação superior”

  1. Avatar de Ricardo
    Ricardo

    Os economistas tendem a acreditar que dados empíricos são números, tabuláveis e graficáveis… e ponto! Esquecem-se com muita facilidade do trabalho conceitual. Inclusão social? deselitização? acesso a direitos? raça? Tudo nessa terminologia é opaco, reificado, fetichizado conforme certa moda discursiva. Há pouco de consistência causal e relacional em termos de dinâmicas sociais, como se tudo pudesse ser medido a partir de variáveis isoláveis, bem ao gosto da econometria. Alguns dizem-se contra o paradigma clássico, mas replicam preguiçosamente seus paradigmas epistemológicos. Parece que tudo se reduz a uma questão de aderência a certa retórica. Essa é a economia da Unicamp? Que mediocridade!!! Nas ciências sociais do mundo desenvolvido da academia não somos tão displicentes.

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