Dívida Pública: mitos e realidade

Publicado na Carta Maior em 28-1-2016

Sobre a origem

A dívida pública brasileira é estimada em torno de R$3 trilhões (conforme a metodologia usada pode ser mais ou menos). Isso corresponde a cerca de 65% do PIB, no caso da dívida bruta, e a cerca de 49% do PIB na dívida líquida (descontadas as reservas). Em termos comparativos com outros países, não é uma dívida grande. O Japão deve mais de 230% do PIB, os EUA quase 100%. No entanto, desde 1994 até hoje, ela cresceu de cerca de R$50 bilhões para os valores atuais.

No início dos anos 1990, com o plano Collor, a dívida brasileira havia sido quase toda “esterilizada”. O bloqueio dos ativos financeiros, a não incorporação da inflação de março de 90 (de quase 80%) e a posterior correção desses ativos em valores inferiores à inflação real corresponderam a um calote efetivo na dívida, que foi reduzida a valores muito baixos.

Reza a lenda, difundida pela mídia conservadora e pelos economistas liberais, que o crescimento da dívida é resultado da “gastança” dos governos, culpa da Constituição de 88 que foi muito “generosa” com os direitos sociais, culpa dos aposentados – e por aí vai. Na verdade, com exceção de alguns anos do governo FHC e dos dois últimos anos do governo Dilma, em nenhum momento os gastos primários do governo (excluindo juros) foram maiores que a arrecadação de tributos e contribuições sociais. O chamado déficit primário foi exceção nos últimos 21 anos em relação aos superávits primários.

Na verdade, a história começa com o Plano Real e a sua concepção embutida de trocar inflação por dívida. Ao ancorar informalmente o real ao dólar e abrir o país às importações, com o objetivo de impedir remarcações de preço pelos produtores nacionais, o governo precisava de entrada de dólares para sustentar o câmbio e cobrir os déficits comerciais e de serviços nas contas externas. A forma de obtê-los foi o programa de privatizações e a subida alucinada da taxa de juros sobre a dívida pública, atraindo toda a sorte de capital especulativo. Taxas de juros reais (descontada a inflação) de mais de 10% ao ano eram normais nos anos 90.

Lula assume em 2003 com uma dívida pública já inflada para R$630 bilhões, decorrente exatamente dessas taxas de juros extravagantes. A política de juros elevados é mantida por Lula com Henrique Meirelles na presidência do Banco Central. A alegação era de que juros altos são essenciais numa economia com tendências inflacionárias crônicas. Dito assim, pode parecer que a inflação é algo no DNA do povo brasileiro ou decorrente da água que bebemos. Na verdade, duas são as razões estruturais para o Brasil ter uma taxa de inflação tão resiliente na faixa media dos 5 a 6%.

A primeira é que como economia em transição há um ajuste de preços relativos em curso que os países ricos já fizeram faz tempo. A elevação em termos reais do salário mínimo, bem como a melhoria dos padrões educacionais, encareceram o custo da mão de obra de baixa qualificação, elevando o preço dos serviços. A estabilidade da moeda e a abertura do crédito imobiliário (praticamente inexistente até então), mesmo que caro, encareceram o preço dos imóveis. Estes preços relativos os países ricos já corrigiram faz tempo. Por esta razão é impensável que possamos ter inflação Suíça, na faixa de 1 a 2% ao ano.

O segundo fator é a persistência de indexações indesejadas na economia brasileira. Diz-se entre economistas que uma das vertentes da luta de classes é o esforço em desindexar a renda do outro lado mantendo a sua perfeitamente indexada. Assim, o discurso conservador aponta a necessidade de desindexar o piso da previdência e agora até o próprio salário mínimo da inflação, possibilitando o “ajuste” em tempos de crise. Mas o Brasil é dos poucos países onde um contrato de aluguel de 30 meses vem com cláusula de reajuste anual, onde as concessões de serviços públicos têm cláusulas de reajuste anual indexadas a índices inflacionários, onde portanto a renda do patrimônio e do capital segue perfeitamente indexada sem contestações, reprogramando para a frente a inflação passada.

Neste cenário, a política de juros altos, muito pouco eficaz no controle da inflação, nada mais é que um mecanismo de transferência de renda do conjunto da sociedade para os beneficiários do rentismo.

Dívida pública: para que serve e para o que deveria servir

Na maior parte dos países a dívida pública é algo positivo. O estado gastar mais do que arrecada para realizar investimentos em infraestrutura, educação, universalização da rede de saúde, benefícios que atingirão gerações, diluindo estes custos no tempo, sempre foi um instrumento positivo para acelerar o desenvolvimento. O maior desenvolvimento daí decorrente aumentará no momento seguinte a própria arrecadação tributária, aumentando a capacidade de gasto do estado.

Obviamente que estamos falando de países que remuneram a sua dívida com taxas próximas à inflação e em alguns casos até abaixo. Inacreditáveis taxas de 0,5% ao ano são frequentes no Japão, por exemplo. Não imagino que fosse possível taxas dessa natureza no Brasil porque nossa moeda não é considerada reserva de valor, ao contrário do Dólar, do Yen e do Euro, mas taxas próximas à média da inflação (portanto taxa zero em termos reais) seriam perfeitamente possíveis.

Para além disso, dívida pública é fundamental como mecanismo de política econômica para regular a liquidez da economia induzindo maior ou menor crescimento. Se, por uma intervenção celestial, a dívida fosse extinta, teria que ser recriada.

O problema, portanto, da dívida brasileira não é o seu tamanho nem a sua existência. É a quem ela serve. Enquanto for remunerada a taxas de juros despropositadas, obrigando o estado a gerar superávits primários para a sustentar, ela serve à elite rentista. Retomar o controle público sobre a dívida, transformando-a em fator de financiamento do desenvolvimento econômico e social do Brasil, é o programa que a esquerda brasileira deve assumir como central.

Quanto dos nossos impostos vai anualmente para pagar a dívida

Em 2014 e 2015, zero. A União teve déficit primário e, portanto, não sobrou da arrecadação de impostos e contribuições nem um centavo para a dívida, fazendo com que toda ela fosse rolada com a emissão de novos títulos com vencimento a futuro. Mais do que isso, parte dos gastos primários do governo, o déficit primário, também foi financiado com emissão de dívida. Essa, aliás, é a razão da grita da mídia conservadora e dos defensores do rentismo, porque esta taxa de juros só é sustentável se a União obtiver robustos superávits primários, como aconteceu de 2003 a 2013.

Circula pelas redes sociais um gráfico em forma de pizza atribuído à Auditoria Cidadã da Divida (ACD) que mais confunde que explica. Essa “pizza” mostra a estrutura de gastos do Orçamento Geral da União e compara despropositadamente gastos com educação, saúde e investimentos, todos vinculados ao orçamento fiscal, com os gastos de amortizações e juros da dívida.

Se tivesse, junto à mesma “pizza”, algo que mostrasse a origem dos recursos do Orçamento Geral da União, veríamos que de 2003 a 2013 a maior parte dos recursos pagos na rubrica da dívida teriam vindo de captações de novos empréstimos com lançamento de novos títulos da dívida, restando uma parte menor paga com os superávits primários. Em 2014 e 2015, veríamos que os recursos captados com o lançamento de novos títulos da dívida superaram os valores pagos relativos à dívida vincenda. A diferença é que de 2003 a 2013, o Brasil realizou superávits primários e, em 2014 e 2015, teve déficits cobertos com nova dívida.

Para os leigos em economia, o tal gráfico passa a noção absurdamente errada de que, se não tivesse dívida, teríamos mais 45% do orçamento para gastar. No cenário de hoje, com déficit fiscal primário em 2014, 2015 e certamente em 2016, a decorrência de uma moratória ou suspensão de pagamentos da dívida seria a União ter que apertar mais ainda o orçamento por não ter como financiar o déficit. Paradoxalmente, significaria mais arroxo.

Dois apontamentos para uma política econômica de esquerda

Esclarecida a inviabilidade das soluções mitológicas como “suspenda-se o pagamento da dívida e a profecia Bíblica de que o mel jorrará para todos se cumprirá”, é necessário pensar um programa de esquerda capaz de enfrentar a realidade.

O primeiro ponto obviamente será mudar o enfoque do enfrentamento da inflação. Este deverá passar pela desindexação de contratos, quebrando-se a reprogramação inercial da inflação passada para o futuro, preservando-se apenas a indexação do salário mínimo e da previdência, baixando a taxa de juros a patamares próximos à inflação, o que significa taxa real próxima a zero. Neste cenário torna-se sustentável ter déficits primários continuados (os EUA têm déficits primários ininterruptos desde 1960), aumentando significativamente a capacidade de gasto do estado. Trata-se aqui de fazer da dívida uma aliada do desenvolvimento.

O segundo ponto passa por uma reforma tributária efetiva que aumente a taxação do patrimônio e da renda, reduzindo os impostos indiretos que oneram o consumo e a produção. Aumentar a progressividade das alíquotas do Imposto de Renda, voltar a tributar distribuição de lucros, isento desde os anos 90, criar um imposto federal sobre heranças (a melhor e mais eficiente forma de tributar grandes fortunas).

Não pretendo nem tenho capacidade de esgotar este assunto, mas acho fundamental que a esquerda faça um debate sério sobre economia e aponte saídas reais fora da mitologia que com frequência a cerca – e que no máximo serve para fazer propaganda de má qualidade.

Crédito da foto da página inicial: EBC

Comentários

6 respostas para “Dívida Pública: mitos e realidade”

  1. Avatar de E
    E

    Se “não sobrou nem um centavo da arrecadação de impostos” para pagar juros da dívida, como alegar que a política de juros altos é “um mecanismo de transferência de renda do conjunto da sociedade para os beneficiários do rentismo”? Fiquei confuso, e creio que o autor também, quanto a origem e destino dos recursos públicos. Consultas ao Portal da Transparência em busca de rubricas do Siafi (“serviço” e “refinanciamento” do dívida) causam ainda mais confusão. Além disso, não seria o resultado primário um conceito ex-post? Vejo alguns exageros na argumentação da Sra. Fatorelli, mas creio que está correta quando demanda mais transparência (subsidiando uma “auditoria”). Há muita confusão em torno do tema, minha inclusive. No mais, o texto é excelente.

    1. Avatar de Gisella
      Gisella

      O artigo tem muita argumentação correta e positiva. Porém, distorce as idéias da auditoria cidadão da dívida. A ACD não propõe calote, propõe, AUDITORIA.
      Ao falar que nos anos 90 a dívida estava esterilizada devidos aos efeitos inflacionários o autor esquece de falar do choque financeiro com a elevação unilateral das taxas de juros que nos contratos da época eram com taxas flutuantes. Isto é, esta esterilização na prática não existiu. Além disto, a defesa de uma auditoria destina-se a verificar a legalidade e legitimidade dos contratos e da legislação no contexto da quebra da paridade ouro dólar e da declaração da não obrigação da conversibilidade ouro-dólar pelo presidente Nixon (esse sim o primeiro e verdadeiro calote da era moderna). Isto é, na era da desregulamentação financeira. Quanto ao gráfico de pizza as informações estão perfeitamente corretas e a sua interpretação não é a de que se não existisse dívida teríamos mais 45% do orçamento para os gastos sociais. Sim realmente o gráfico fala das fontes orçamentárias e não apenas da arrecadação de impostos. Todas as fontes orçamentárias, o pagamento das dívidas dos estados e municípios, o lucro das estatais, receitas de concessões e privatizações, etc. A existência da dívida nos moldes atuais compromete o patrimônio do país , isto é sua riqueza acumulada e não apenas seu fluxo de receitas (superavit ou déficit primário). O gráfico é feito baseada em descobertas de como a contabilização da dívida e sua atualização monetária (privilégios a serem investigados) durante a CPI da dívida no ano de 2009 a 2010. Assim, a ACD baseia suas idéias e propostas em documentos e exclusivamente em teorias, as quais podem ter um certo grau de subjetividade. Acredito que é preciso dar à ACD direto de resposta às inverdades ditas neste artigo sobre sua avaliação dos fatos e documentos e proposta.

  2. Avatar de Leandro Paim
    Leandro Paim

    Calote da dívida pública seria algo impensável. Mas sem uma auditoria o quanto mais, mais difícil será de achar uma alternativa realista para nosso contexto econômico. E mais, precisa repensar uma esquerda que não dê as costas para o sistema financeiro, achando que toda a culpa da economia é culpa do sistema financeiro. Vencemos essa fase arcaica de pensar. A culpa da economia brasileira é em virtude de alternativas cada vez equivocadas do Estado. Repensar uma nova forma de gerir a economia, entendendo e propondo uma nova alternativa in loco com sistema financeiro, seria uma medida muito mais realista e menos utópica. Mas que o Brasil não pode mais ser refém do sistema financeiro, de fato é outra realidade. Parabéns pelo artigo, Achei o interessantíssimo. Grande abraço!

  3. […] e dirigente nacional do PSOL, apesar da posição de seu partido em defesa da referida auditoria, em recente artigo publicado, compartilha alguns dos argumentos mal imputados à ACD e que tentaremos a seguir […]

  4. […] tendem a ver no endividamento um importante instrumento para o desenvolvimento).  David Deccache e José Luís Fevereiro do PSOL,  Rafael Bianchini do PT, além de Laura Carvalho, ex assessora de Guilherme Boulos, são […]

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