Quem lê e relê sempre os mesmos autores acaba por sofrer um retardamento mental em perceber ideias novas. Quando isso ocorre, crê ter feito uma descoberta. Mas é a descoberta do óbvio, ou seja, é uma redescoberta de fenômenos que os heterodoxos conheciam há muito tempo e se pasmavam de que os ortodoxos não soubessem deles.
Estes cometem o viés heurístico da auto validação: a tendência do observador de procurar ou interpretar informações de forma que estas apenas confirmem preconcepções próprias. Eles preferem informações que confirmem suas crenças ou hipóteses, independentemente de serem ou não verdadeiras. Praticam o contrário do método científico de buscar falsear hipóteses.
Publiquei em 1999 um livro intitulado “Economia Monetária e Financeira: Uma Abordagem Pluralista”, que chegou a ser finalista no Prêmio Jabuti no ano. Baseado em ideias defendidas em concurso para Livre-Docência, cuja banca era composta por Professores Titulares, inclusive com um ex-ministro da Fazenda, apresentei em seu primeiro capítulo fundamentos e conceitos básicos para uma Teoria Alternativa da Moeda (TAM). Uma década após, já na Era Qualis, quando se passou a valorizar mais pequenos artigos do que grandes livros, enviei para a Revista Brasileira de Economia um artigo reapresentando essa TAM. Devolveram-me, sumariamente, alegando que “tal teoria não existe nos cânones ortodoxos”!
Conformado em ser um autor invisível para a ortodoxia, retomo um fantasma para assombrá-la: postulados de uma TAM para contrapor aos da Teoria Quantitativa da Moeda (TQM). Os pontos críticos desta teoria estão nas suas premissas, que seus defensores ortodoxos acham imediatamente evidentes e as admitem como universalmente verdadeiras sem exigência de demonstração.
A TQM consiste de um conjunto de proposições inter-relacionadas ou postulados que suportam a conclusão de que quando a quantidade de moeda se torna abundante, seu valor ou poder de compra cai. Consequentemente, o índice geral de preços das mercadorias se eleva.
Como o recente debate monetário entre André Lara Resende e economistas ortodoxos brasileiros demonstrou, mais uma vez, há, na teoria monetária, confusão entre correlação e causalidade, identidade e funcionalidade, causa e efeito. A defasagem entre isso permite que a simples inversão de argumento constitua, muitas vezes, verdadeiro “ovo-de-Colombo”, ou então se caia em dilema “ovo-e-galinha”…
O Postulado da Proporcionalidade da TQM estabelece que uma dada variação percentual no estoque nominal de moeda resultará em idêntica variação percentual no nível geral dos preços. A TAM contesta este postulado da TQM que, erroneamente, assume a estabilidade na velocidade e, em sua contrapartida, a demanda por moeda. De fato, a velocidade é volátil, variável imprevisível, influenciada por expectativas, incerteza e variações no volume de ativos substitutos da moeda. É afetada por mudanças institucionais ou nos comportamentos habituais dos agentes. A proposição de que o montante do meio circulante que está sendo retido varia amplamente, em curto prazo, equivale a renunciar à TQM, no sentido mais estrito de que a elevação do nível geral dos preços é, proporcionalmente, determinada pela expansão monetária.
O Postulado da Causalidade da TQM estabelece que variações monetárias precedem e causam variações no nível de preços. Nesta relação de causa-e-efeito, a moeda é vista como a variável ativa e o nível de preços como a variável passiva ou dependente. Sua crítica exige a inversão na direção de causação. Em consequência, exige-se uma teoria “não estritamente monetária” dos preços, explicando o movimento destes a partir de decisões microeconômicas descoordenadas. O mark-up desejado ex-ante só é efetivado se o vendedor encontra um comprador com meio de pagamento, disposto a adquirir o bem ao preço oferecido. A moeda entra na explicação não como causadora, mas simplesmente como sancionadora. O valor do dinheiro comporta-se em razão inversa ao nível geral dos preços: cai quando ele se eleva, e sobe quando ele abaixa.
O Postulado da Neutralidade da TQM estabelece que, exceto para períodos transitórios de ajustamento, variações monetárias não exercem influência sobre variáveis econômicas reais, por exemplo, produto agregado, emprego, preços relativos etc. Para criticá-lo, a TAM revela que a moeda não é simplesmente um “véu” que obscurece os fenômenos que realmente importam. A moeda não é neutra e importa nas decisões, pois afeta nas motivações dos agentes econômicos. O predomínio de sua retenção provoca efeitos danosos do ponto de vista da realização da produção.
Como corolário da proposição quantitativista que o estoque nominal de moeda é o fator causal independente governante do nível geral dos preços, o Postulado da Exogeneidade da TQM refere-se à condição requerida desse fator não ser determinado pela demanda. Se a quantidade de moeda não for uma variável independente, mas em vez disso responder passivamente a mudanças antecedentes na demanda por ela, então os teóricos quantitativistas não podem alegar que ela joga o papel ativo iniciante na determinação do nível de preços. Portanto, a TAM mostra a interdependência entre a oferta e a demanda por moeda. A oferta de moeda é endógena, isto é, determinada também por forças do mercado através de inovações financeiras.
O Postulado da Teoria Monetária do Nível dos Preços da TQM estabelece que este nível tende a ser influenciado, predominantemente, por variações na quantidade da moeda. A implicação é que esta instabilidade do nível de preços deriva, principalmente, de distúrbios monetários em vez de causas não-monetárias originárias no setor real da economia. Contrapõe-se à essa visão mostrando que os preços são formados a partir de custos, inércia ou expectativas. Interagindo no mercado, os oligopólios levam à oscilação da dispersão dos preços relativos, afetando o índice geral de preços.
A crítica da TAM à TQM não é só factual, porque “apesar do afrouxamento monetário recente a inflação não explodiu, ao contrário, continuou excepcionalmente baixa”. Não comete o equívoco de generalizar uma experiência norte-americana como fosse uma teoria universal. Lá o Banco Central pode fazer uma política monetária frouxa, recomprando barato títulos de dívida pública emitidos para salvar seus bancos. Imprime papéis pintados de “dólar”, para fazer a monetização da dívida pública ou “afrouxamento monetário”, e o resto do mundo os aceita em troca de mercadorias. Além disso, os títulos de dívida pública norte-americanos são absorvidos em reservas cambiais dos países emergentes como China, Japão, Rússia, Brasil, Petro-Estados etc. Logo, o resto do mundo financia o imenso déficit comercial norte-americano.
Será que não é porque “os Estados Unidos não é aqui” que o Tesouro Nacional não monetiza a dívida mobiliária brasileira, resgatando-a? A inundação de liquidez, não permitindo via seu gerenciamento a fixação da Selic-mercado no nível da Selic-meta, não levaria o real correr para o regaço do dólar? A dolarização da economia brasileira, ao estabelecer um sistema bi monetário, isto é, dólar como reserva de valor e unidade de conta, mas real como meio de pagamento, não provocaria uma hiperinflação?!
Todo o devaneio teórico de Lara Resende é para chegar a uma conclusão que os economistas heterodoxos já tinham alcançado há muito tempo, mas que os colegas ortodoxos não conheciam, já que nos menosprezam. O juro alto não só agrava o desequilíbrio fiscal, como no longo prazo acompanha a inflação alta. Juros é custo financeiro, mas também é custo de oportunidade. Afeta todas as demais rendas derivadas de câmbio, aluguel, salário e lucro. Determinante, em última instância, de consumo, investimento, gasto governamental e saldo exportador, em consequência, atinge também todos os setores produtivos. Embora a taxa de juro básica de referência seja determinada, discricionariamente, pela Autoridade Monetária, esta não é o demiurgo sobrenatural. Ela não atua como o princípio causal, com o sentido de criador, dotado de movimento próprio, que tem a onipotência de organizar o Universo… e a onisciência para baixar a taxa de inflação.
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
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