Os eventos franceses das últimas semanas reforçam a convicção de que a França, a Europa, o Ocidente e afins vivem, amargamente, um duro, inquestionável e irrevogável momento de “descivilização”.
Os fundamentos de cultura e espiritualidade que matizaram o mundo ocidental estão, como sabido e desde muito, em acelerada decomposição. Europeus e norte-americanos perderam a fé e a sua ética católica ou protestante e estão construindo, desde ao menos as guerras totais do século XX, uma sociedade pós-cristã. Tudo isso vem indicando que o esteio moral que galvanizou a longa experiência civilizacional do Ocidente deixou de ser majoritário no mercado das ideias.
O identitarismo – e todo o seu relativismo – parece ter vencido mais e melhores batalhas. A “religião woke” – por falar e gritar mais alto – parece ter soterrado as demais narrativas. Como resultado de tudo isso, firmou-se um estranho paroxismo que só oferta lugar de destaque aos admiradores irrestritos do jovem Nahel, morto em Paris, no último dia 27 de junho, após uma interpelação policial.
O assassinato de Nahel causou manifestações, a favor e contra, que ultrapassaram as fronteiras de Paris e sensibilizaram o país inteiro. Milhares – talvez, mais de uma dezena de milhar – de automóveis foram incinerados em toda a França. Centenas de veículos do transporte em comum foram depredados. Dezenas de estabelecimentos públicos foram vandalizados. Milhares de estabelecimentos comerciais foram saqueados.
Centenas de pessoas comuns foram agredidas. Dezenas delas precisaram ser hospitalizadas. Milhares de oficiais da lei e da ordem – majoritariamente policiais – foram hostilizados. Centenas de autoridades políticas e militares seguiram sendo intimidadas. Dezenas de parlamentares foram interpelados e fragilizados por seus eleitores. E um prefeito, de uma cidade do interior, teve a sua casa violada e a sua família, posta em constrangimento.
Segmentos de direita, extrema ou moderada, puseram a culpa na imigração. Nahel era um rapaz de 17 anos, fruto de família imigrante e disfuncional, vivendo na periferia de Paris, em “territórios perdidos da República”, indiferente à cultura francesa e contrário aos ditames éticos e morais do Ocidente.
Segmentos de esquerda, normal ou desvairada, puseram a culpa no racismo estrutural, no machismo ambiente, na virilidade policial, na falta de empatia com a diferença e com o sofrimento alheio, na ausência de mais mulheres em postos de comando e na incapacidade do estado francês em “acolher toda a miséria do mundo” – para lembrar uma máxima do inesquecível socialista (normal) francês Michel Rocard.
Não é a primeira vez que incidente similar acontece na França nos últimos quarenta ou cinquenta anos. Mas talvez seja a primeira vez, no entanto, que a noção de anomia perdeu a sua capacidade de persuasão e deu vazão à reabilitação do termo “descivilização”.
Parece ter sido o presidente Emmanuel Macron o primeiro presidente de um país ocidental a lançar mão do termo, em reunião do Conselho de Ministros, semanas atrás, antes mesmo do fatídico dia 27 de junho, para explicar a situação francesa e europeia correntes. O presidente francês reconhecia, na ocasião, que o malaise français (mal-estar francês) provinha e induzia causas e consequências, como sempre, extremamente complexas, mas, desde algum tempo, essas causas e consequências tinham mudado de teor, de dimensão, de diapasão.
A insatisfação generalizada, notava ele, havia ultrapassado as métricas do mero desespero e da desesperança. A violência plural parecia já ter saturado a paciência de todos, inclusive dos mais estoicos. A racionalidade das instituições tinha sucumbido a relativizações. A deontologia das funções perdia a sua própria natureza diante da desqualificação da autoridade de autoridades.
O sentido da identidade, pela primeira vez, começava a perder a sua essência ante o identitarismo desbragado. E tudo que outrora fora sólido e tangível parecia desmanchar no ar e regredir no chão de terrado cotidiano concreto dos franceses.
Não se tratava, portanto, somente de “declínio do Ocidente”. Um declínio evidente. Mas de um momento de “descivilização”.
A noção precisa do termo “descivilização” foi elaborada pelo sociólogo Norbert Elias em sua obra-máxima, de 1939, O Processo Civilizatório. O núcleo de seu argumento consistiu em constatar que, ao longo dos séculos, especialmente na Europa e notadamente na França, as pessoas foram criando mecanismos morais e racionais de controle da violência a partir do autocontrole de suas pulsões.
Como resultado dessa gramática de posturas, civilidade, urbanidade, cordialidade, cortesia, gentileza, cortesania, sutileza, humor, empatia e afins vivaram regras de convívio. Mas, também segundo Elias, essas regras, posturas e códigos podem estacionar ou mesmo regredir. E quando regridem podem gerar “descivilização”.
O período entreguerras foi o grande momento dessa regressão. Pela primeira vez na história moderna e contemporânea do Ocidente que a polidez se fez ausente da maior parte das relações. A violência plural do conflito de 1914-1918 brutalizou todas as relações humanas, alterou espaços de experiência, modificou horizontes de expectativas e conduziu o império da civilidade ao império da suspeição.
Noventa anos depois, parece que as portas da desrazão foram reabertas. Uma regressão inquestionável toma conta de todas as interações. O “declínio do Ocidente” não se percebe a olhos nus. Mas a degeneração da civilidade é notada em todas as esquinas. Vive-se, hoje – que pode ser entendido como neste início de século 21 – o retorno inapelável da violência gratuita e a banalização da violência simbólica, física, verbal, institucional.
Uma opinião divergente da média de determinada audiência, por exemplo, vira, em qualquer lugar do mundo outrora modelo de civilidade, motivo para ameaça, inclusive, de morte em lugar de estímulo para discussão e superação de diferenças via persuasão. O descontrole das pulsões virou a regra.
Basta uma visita rápida às bolhas das redes sociais, do noticiário ou dos espaços universitários. Ninguém escuta ninguém e ninguém respeita ninguém. Sim: isto é anomia. Mas o caso Nahel veio indicar que, talvez, realmente, seja mais que somente anomia. Tudo que se viu e se vê desde o dia 27-28 de junho desmascara, mais uma vez, a constatação indigesta de que algo cheira muito mal na França e alhures.
A selvageria, o terrorismo, o banditismo, a barbárie, o mau-gosto, a criminalidade sem propósito viraram o pão de cada dia nos principais países e nas principais cidades de todo espaço ocidental e extremo-ocidental, como é o caso do Brasil, neste início de século 21. Isso somando não é, simplesmente, realmente, somente, anomia. É regressão.
Há cem anos, essa regressão virou alimento para ovos peçonhentos de serpentes indomáveis que encarnaram em tipos estranhos como Stálin, Hitler, Mussolini e afins. Resta saber se 1) a regressão atual configura, realmente, uma “descivilização”, 2) quais animais peçonhentos ela anda alimentando e 3) se teremos meios de contê-los antes do Juízo Final.
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