Desafios e rumos da esquerda democrática no pós-golpe

É inegável que o golpe parlamentar-jurídico-midiático abalou os planos do campo democrático popular. Também é verdade que, mesmo antes do golpe ser concluído, o ministério do segundo governo Dilma já anunciava a derrota, em particular na economia. Por fim, é preciso reconhecer que apesar dos inegáveis avanços sociais e econômicos, algumas políticas e escolhas econômicas dos governos Lula e Dilma não condiziam com uma estratégia de esquerda.

Apesar disso, o campo democrático popular de esquerda parece estar longe do aniquilamento, como desejariam seus adversários. Através de grandes mobilizações sociais em âmbito nacional, uma imensa força jovem e transformadora tomou conta das ruas, mesmo que de maneira pouco articulada e planejada.

Diante deste quadro, é preciso garantir um sentido estratégico para as ações políticas a partir deste novo cenário, reagrupando as esquerdas e promovendo uma reflexão crítica, com o objetivo de superar as eventuais divisões e dinamizar as mobilizações. Este texto busca elencar quatro temas que deveriam ser enfrentados para atingir tais objetivos.

1 – Realizar uma análise crítica dos governos Lula e Dilma.

A esquerda será incapaz de dialogar com o resto da sociedade se não apontar os erros dos governos Lula e Dilma, em particular em sua fase final. É fundamental defender as importantes conquistas do período, mas é preciso explicar as causas da crise atual.

Responsabilizar apenas a crise internacional e a irresponsabilidade da oposição golpista é insuficiente como narrativa. Se quiser ser ouvida e elaborar novos projetos, a esquerda precisará refletir criticamente sobre os limites de atuação e os erros que cometeu nos últimos anos.

Em primeiro lugar, é preciso reconhecer as insuficiências. A ausência de reformas profundas (como a tributária, política, dos meios de comunicação etc.) foi indevidamente justificada em nome da estabilidade de um sistema político fracassado.

A manutenção do tripé econômico, mesmo que flexibilizado, se mostrou contraditório com o objetivo de mudança estrutural da economia, ao se valer de juros altos e câmbio valorizado. No campo do Estado, a manutenção de uma estrutura político-burocrática corrompida, classista e politicamente conservadora, além de enfraquecida por décadas de liberalismo, trouxe limitações ao avanço do investimento público e partidarizou alguns setores de controle e investigação.

Por fim, é preciso reconhecer os equívocos: As alianças espúrias com partidos conservadores visando garantir a governabilidade; a adoção de uma estratégia econômica liberal com vistas a aplacar a sanha do mercado; a cooptação e falta crescente de diálogo com os movimentos sociais. Em suma, a ideia de transformação estrutural sem conflito político enfraqueceu a capacidade de resistência e mobilização do campo popular, que se viu engolido pela onda conservadora já nas manifestações de 2013.

2 – Construir e propor um novo projeto de país.

Não é suficiente resistir ao projeto liberal-conservador representado pelo governo golpista. Apesar de necessária, a denúncia e a resistência não conquistarão o “coração e mente” dos brasileiros, caso a esquerda não consiga demonstrar qual tipo de sociedade defende e por meio de quais medidas podemos alcançá-la.

As propostas concretas devem derivar dos valores deste campo, como a defesa dos direitos sociais, da igualdade de oportunidades, da democracia efetiva e do desenvolvimento econômico/social ambientalmente sustentável.

A defesa da ampliação e melhoria dos serviços públicos pode ser o coração da estratégia, dialogando com as manifestações de 2013. A política econômica e as estruturas de Estado (devidamente reformado) devem sustentar estes objetivos, ao incentivar mudanças na estrutura produtiva e social.

Por fim, o conjunto das propostas deve ser perpassado pelos novos temas colocados pela sociedade, como a igualdade de gênero, racial, a liberdade sexual, a sustentabilidade ambiental, o direito à cidade etc.

3 – Garantir sentido estratégico para suas propostas e ações.

Nesta nova quadra histórica, a esquerda precisará se valer de estratégias de diálogo que disseminem seus ideais pelo conjunto da sociedade. Esta tarefa precisa ser enfrentada com mente aberta ao diálogo, sem purismos precipitados, pois é impossível para a esquerda avançar em uma sociedade dominada por valores preconceituosos e economicamente liberais.

Neste sentido, garantir sentido estratégico para a ação significa disputar (com unidade) os valores e ideais políticos da sociedade.  As lutas deste campo devem reforçar as ideias de solidariedade social, liberdades civis e do Estado de bem-estar, se recusando a atuar conjuntamente com forças políticas que não compartilhem desses valores fundamentais.

4 – Fortalecer as novas formas de organização social e mobilização.

A mobilização e organização política ganharam novos contornos a partir de junho de 2013. Atualmente, a maior parte das mobilizações contra o golpe é convocada pelas redes, através de grupos temáticos e sem a participação direta dos partidos ou sindicatos. Coadunar a força das tradicionais organizações sociais dos trabalhadores/estudantes com a energia da juventude mobilizada nas redes e periferias é o grande desafio da esquerda democrática.

Neste sentido, a criação de “frentes” de esquerda, como a Frente Brasil Popular ou a Frente Povo sem Medo, são bem-vindas. A organização na academia, através do Fórum 21, também atende a necessidade de organização das esquerdas.

No entanto, é preciso garantir a sinergia destes movimentos, sem recriar protagonismos indevidos e sem descaracterizar a luta temática de cada grupo, evitando rupturas e garantindo a aproximação com os grupos temáticos não abarcados por estas frentes.

O desafio de unificar o campo é a tarefa mais importante para a esquerda nos anos vindouros. Apenas assim será possível aproveitar a nova energia trazida pela juventude para dentro da luta estratégica do campo democrático popular.

Conclusão

Obviamente, os desafios e rumos da esquerda democrática não se encerram nestes quatro pontos sugeridos. A discussão do papel dos partidos políticos, por exemplo, não foi abordada neste texto. Apesar de tais insuficiências, os temas aqui tratados não podem ser desconsiderados caso a esquerda queira transformar a atual energia social em ações políticas efetivas. No seio da denúncia do golpe pode surgir uma nova esquerda mais forte e unida.

Crédito da foto da página inicial: Vaidapé

Comentários

4 respostas para “Desafios e rumos da esquerda democrática no pós-golpe”

  1. Avatar de Alessandra S Penha
    Alessandra S Penha

    Eu gostei muito do ensaio do professor Guilherme, ainda mais porque venho refletindo sobre estas questões há um bom tempo, haja vista meu descontentamento com os rumos da política brasileira e com o apagamento da esquerda como movimento, a partir do primeiro mandato de Lula
    Pergunto aqui, como efetivamente, podemos renovar esta esquerda do pós-golpe, a partir das reflexões aqui expostas? Sim, pensamos tanto em reforma política, por exemplo, mas me parece quase impossível, esta questão ser posta em prática, considerando nossos representantes e nosso sistema de governo. Sim, podemos ter mais cuidado ainda com nossas escolhas eleitorais, mas isso ainda me parece muito pouco. O que podemos fazer como esquerda, além das pressões na ruas?

    1. Avatar de Maria
      Maria

      Muito bom! Gostaria de ver a resposta da sua pergunta.

  2. Avatar de Francisco Tejo
    Francisco Tejo

    Muito bom o ensaio do Prof. Guilherme! Entretanto, para implementar as quatro (e outras) medidas, necessitamos construir algumas ferramentas que possibilitem disseminá-las no seio da nova militância de esquerda que ora parece estar em gestação. Assim, por exemplo, precisamos: 1. De um veículo, de conteúdo leve, tipo volante, que possa ser distribuído em pontos de ônibus e outros locais de grandes aglomerações, anunciando mobilizações; 2. Um veículo cibernético, dotado de requisitos de proteção contra invasões (criptografia, redes alternativas às redes atuais, alvos de invasões por quem conhece a tecnologia da informação); 3. Ampliação das frentes atuais, no sentido de fortalecer as discussões sobre o projeto de sociedade que almejamos construir e outras ações associadas, centradas em questões que garantam a unidade dos seus diversos partidos e 4. Criação de um modelo de crowdfunding para viabilizar os gastos necessários a movimentos dessa natureza.
    Por enquanto, essa á a minha modesta contribuição.

  3. Avatar de Gutemberg
    Gutemberg

    Professor, suas idéias e articulações são muito interessantes, no entanto, não acho sábio de sua parte ligar sua imagem e discurso a pessoas mentirosas e populistas que se apossam indevidamente da posição da esquerda.

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