Crise Fiscal do Estado: por que ela não existe

A famosa comparação do orçamento do Estado com o orçamento das famílias é encontrado em discursos de líderes da esquerda, como Dilma Rousseff ou Obama, e da direita, como Margareth Thatcher ou Theresa May. Assim, ainda que os esquerdistas continuem se dizendo contra as políticas neoliberais – privatizações, desproteção dos trabalhadores, redução de salários, redução dos gastos sociais etc. –, eles também se rendem à necessidade de “algum ajuste fiscal”, de “equilibrar o orçamento”, de “algum teto fiscal”, pois, do contrário, viveremos uma “crise fiscal”.

O que há de errado com a ideia de “crise fiscal” do Estado? Fundamentalmente, o erro se encontra na premissa subjacente de que o Estado precisa de tributos ou venda de títulos para financiar seus gastos. Na verdade, a relação é a inversa: o setor privado é que precisa dos gastos públicos para que seja capaz de pagar tributos e comprar títulos de dívida pública. Há mais de 5000 anos o dinheiro é uma entidade estatal. O Estado cria uma unidade de conta e cobra tributos nessa unidade. O Estado emite moeda nesta mesma unidade de conta para fazer seus pagamentos e os recebedores desses pagamentos aceitam a moeda estatal por precisarem dela para pagarem os tributos ao Estado.

Desse modo, o governo que emite sua própria moeda nunca pode ficar sem moeda para fazer os pagamentos denominados na sua própria moeda. Uma vez que o Estado não precisa de receitas tributárias para fazer pagamentos em sua própria moeda, o sentido restrito de crise fiscal – ficar sem dinheiro para realizar pagamentos em sua própria moeda – é apenas e tão somente um conceito vazio de sentido.

Existe uma preocupação diversa, mas relacionada, à “crise fiscal” em relação à “sustentabilidade” da dívida pública. Desde que se aceitem os argumentos no parágrafo acima, a sustentabilidade neste caso não diz respeito à capacidade de pagamento da dívida pelo governo, mas a uma política fiscal que levasse a relação matemática entre dívida/PIB a crescer ilimitadamente. A preocupação aqui seria com uma dívida pública crescendo sem controle, com possíveis consequências como inflação, calote ou uma austeridade forçada.

Matematicamente, o raciocínio é como segue. O crescimento da dívida sobre o PIB está condicionado pela taxa de juros incidente sobre a dívida do período anterior; pelo déficit (superávit) primário do governo no mesmo período; e pelo crescimento do PIB corrente. Ao fim e ao cabo, o crescimento ilimitado da dívida em relação ao PIB depende da diferença entre a taxa de juros e o crescimento da economia.  

Não é difícil demonstrar que mesmo com um déficit primário baixo, se a taxa de juros for maior do que a taxa de crescimento da economia, a relação matemática entre dívida/PIB cresceria ilimitadamente. Também é fácil demonstrar que mesmo experimentando um déficit primário numericamente elevado, com taxas de juros abaixo da taxa de crescimento da renda, a relação algébrica dívida/PIB estabiliza em algum nível. Está claro, portanto, que a estabilidade matemática da relação dívida/PIB se deve ao diferencial entre taxa de juros e crescimento do PIB. Enquanto os déficits/superávits são resultantes e fora do controle direto da política econômica, a taxa de juros é uma variável política determinada pelo Banco Central. A taxa decidida pelo Banco Central define, ainda, a curva a termo do complexo das taxas de juros. Ademais, o Banco Central também pode influenciar as taxas de juros de longo prazo comprando títulos públicos de longo prazo. Em outras palavras, a sustentabilidade matemática está inteiramente sobre controle do devedor: o próprio Estado. Que espécie de “crise fiscal” é essa é difícil de compreender…

Portanto, se existe qualquer receio, ainda que teórica e empiricamente infundado, de que a relação dívida/PIB será matematicamente insustentável, a solução permanente para o problema algébrico é legislar para o Banco Central estabelecer a taxa de juros sempre abaixo da taxa de crescimento da economia. A solução matemática é bem simples!

Seja como for, a Teoria Monetária Moderna argumenta que existe um erro fundamental em transpor para um governo soberano monetariamente uma condição que só vale para agentes privados ou públicos que não emitem sua própria moeda. De fato, os últimos enfrentam restrições orçamentárias mais ou menos rígidas uma vez que precisam financiar déficits com dívida resgatável em moeda emitida por terceiros. Um governo monetariamente soberano, isto é, que emite sua própria moeda, não enfrenta nenhuma restrição similar. Em qualquer caso, uma vez que a dívida é denominada na moeda do governo, independentemente do tamanho que a dívida com juros alcance, o governo sempre estará em condições financeiras de realizar todos os pagamentos (principal e juros) relacionados à dívida. Solvência da dívida pública não é realmente uma questão relevante aqui.

Podemos concluir que um governo que emite dívida em sua própria moeda nunca pode se encontrar em crise fiscal, seja porque nunca pode ser levado involuntariamente a dar um calote, seja porque pode sempre estabelecer a taxa de juros e, portanto, a sustentabilidade algébrica da relação dívida/PIB.

Não é de surpreender que mesmo passando por sua mais grave crise política e econômica desde a Constituição de 1988, a taxa de juros esteja em seu nível mais baixo em mais de 30 anos, ainda que sua dívida em relação ao PIB seja a mais elevada nos últimos 50 anos. As dívidas vincendas e os juros sobre elas estão sendo pagos regiamente, sem sobressaltos e sem qualquer detentor de títulos públicos querendo se desfazer delas com receio de não pagamento. Também não se vive qualquer surto inflacionário que requeira elevações na taxa de juros.

A questão da natureza da moeda continua iludindo os economistas e agentes políticos. O mais grave dessa ilusão é que ela tem desviado a atenção e os esforços daqueles que gostariam de propor políticas em benefício da maioria ao torná-los reféns, mesmo sem saber, dos interesses que pretendem combater.

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