Conduzir para não ser conduzido

Para dar fundamentos à minha crítica da literatura de denúncia da “financeirização”, reuni uma coletânea de estudos sobre finanças em um livro digital, cujo título é o deste artigo. Aqui desejo analisar por qual razão misteriosa essa ideia me ocorre quando leio essa denúncia, recorrentemente realizada por meus companheiros esquerdistas.

Non Ducor Duco é uma expressão em latim com significado de “não sou conduzido, conduzo”. O lema está presente no brasão da cidade de São Paulo.

Penso: é necessária a Educação Financeira para entender – e usar em próprio proveito – esse fenômeno típico de uma fase do ciclo de endividamento, quando a taxa de acumulação de riqueza financeira se descola da taxa de crescimento da renda. Em geral, ocorre durante a fase de desalavancagem financeira depois de uma expansão-boom-crash-depressão.

Passada aquela, estamos vivenciando a fase de “empurrar corda”, quando a política monetária fica inoperante. Quando o investimento público produtivo arrastar os gastos privados, virá a normalização. Conduziremos em vez de sermos conduzidos

O capitalismo é por definição financeiro, assim como comercial, industrial, tecnológico etc. É um sistema complexo emergente de interações de todos esses componentes essenciais, portanto, é dinâmico. Em fase de desalavancagem financeira, a crítica à “financeirização” ressurge por o capital estar retraído em termos de contratação de mão de obra. Em fase de expansão, a geração de ocupações deixa os críticos felizes…

Existe um entendimento vulgar da chamada “financeirização”, onde se opõe o “setor” financeiro ao setor “real”, de modo a deduzir aquele ser irreal ou fictício. É erro tratar o “financeiro” como um setor – e não como um sistema capitalista, ou seja, intrínseco e inseparável deste. Os subsistemas de pagamentos, de gestão de dinheiro e de crédito interligam todos os componentes interativos desse sistema complexo.

Outra vulgaridade é opor o “capital produtivo” (“do bem”) ao pressuposto “capital improdutivo” (“do mal”). Aquele seria o capital industrial e este seria o capital financeiro de uma classe ociosa. O passado de exploração de força do trabalho, inclusive feminina e infantil, em longas jornadas de trabalho nas fábricas insalubres, é ilusoriamente glorificado em nome de uma pregação de “o trabalho dignificar o ser humano”.

O escravo era desumanizado. A classe ociosa desejava demonstrar riqueza e não ter a necessidade de “trabalhar como um mouro”. Esta expressão vem da expansão portuguesa, quando grande parte do trabalho era feito por cativos, habitantes escravizados da antiga Mauritânia, região situada na costa oeste do deserto do Saara, na África. Na Idade Média e no Renascimento, “mouro” era o nome dado aos “sarracenos” (árabes), conquistadores da Espanha e de Portugal.

Conduzir para não ser conduzido, de maneira alienada, pelo sistema financeiro, exige dos trabalhadores o planejamento da vida financeira. Isto logo depois de ter concluído sua graduação universitária na profissão mais adequada à sua felicidade cotidiana, durante todo o ciclo de vida profissional ativa.

Exige colocar em uma planilha, inicialmente, as receitas – brutas e líquidas, detalhando também todos os descontos para ter consciência dos tributos e encargos trabalhistas pagos. Depois de realizado o investimento planejado, listam-se as despesas fixas, variáveis e extraordinárias. Pela receita necessária para cobrir as despesas indispensáveis se deduz o segundo passo decisivo a ser dado após a escolha da profissão: a escolha da ocupação, isto é, onde a exercer.

Uma primeira lição de vida é ganhar dinheiro no mercado de trabalho e privilegiar a proteção de seu poder aquisitivo contra a corrosão inflacionária no mercado financeiro. Trabalhadores não especializados no assunto não enriquecem no mercado de capitais.

Um equívoco, advindo de uma leitura desatenta da literatura de denúncia da “financeirização”, é não perceber algo óbvio: no agregado, a renda do trabalho é superior às demais rendas. Mesmo para trabalhadores do varejo de alta renda, em geral, eles individualmente obtém maior renda do trabalho intelectual.

Por exemplo, um trabalhador para receber R$ 5 mil/mês (renda de trabalhadores graduados em Ensino Superior em SP já nos 10% mais ricos), teria de ter capital de R$ 1 milhão investido em renda fixa se o juro fosse de 0,5% ao mês. Os 5% mais ricos recebem a partir de R$ 10 mil e o 1% mais rico, R$ 30 mil. Logo, um destes teria de ter estoque de R$ 6 milhões para obterem fluxo de renda mensal de R$ 30.000 com juro de 0,5% a.m.. O juro atual de 3,5% ao ano equivale a 0,29% ao mês.

A concentração de renda no Brasil aparece por 43,1% da massa de rendimentos serem recebidos pelos 10% mais ricos. A concentração de riqueza financeira é ainda mais grave. Os 130.447 clientes do Private Banking possuem a riqueza média per capita de R$ 13 milhões, depois de cair para menos de R$ 10 milhões no crash de março. No fim de 2015, um quadrimestre antes do golpe de abril de 2016, tinham“só” R$ 6,5 milhões…

Juros compostos não param de capitalizar o estoque, embora no ano passado tivessem sido quase “zerados” – e tornados negativos em termos reais. Com a fuga da renda fixa para a renda variável, os ganhos de capital em ações os compensaram largamente.

Calculei com base nos dados das DIRPF (e registrei em uma tabela no livro), os fluxos de rendimentos acumulados de 2015 a 2019. Recebidos como Renda do Trabalho, tiveram seus percentuais em flutuação entre 67% e 70% do total. Em contrapartida, os da Renda do Capital Produtivo oscilaram entre 20% e 22% e os da Renda do Capital Financeiro entre 4% e 6%. Os não especificados tiveram queda de 7% para 3% em 2019.

Esta maior geração de Renda do Trabalho aconteceria mesmo se fossem contabilizadas como Renda do Capital Financeiro as elevadas Doações em Espécie. Isso é um indicativo de, mesmo entre os declarantes com renda acima da média da população, o problema é a distribuição da renda. A partir de seu fluxo, principalmente de Renda do Trabalho, se parte para a concentração do estoque de riqueza.

Há a constatação nos EUA – e talvez não seja proporcionalmente tão diferente no Brasil – de aplicações dos 10% mais ricos financiarem o consumo dos 90% mais pobres. É simplório, mas é didático a respeito da má distribuição lá e cá…

Quanto se deve acumular em riqueza financeira durante a vida profissional ativa? Com 65 anos o patrimônio líquido financeiro deve ser nove vezes a receita total líquida recebida anualmente de todas as fontes de renda de acordo com o algoritmo denominado “1-3-6-9”. Até os 35 anos, uma vez o salário anual; até 45 anos, três vezes; até 55 anos, seis vezes. Na aposentadoria, com nove vezes, esse estoque de riqueza financeira permitirá manter o mesmo padrão de vida com retiradas mensais durante vinte anos até o zerar. Isto com juro médio de 0,5% a.m..

Embora na média anual o percentual da contribuição da renda do trabalho possa parecer inferior ao da renda do capital financeiro, costuma haver uma distorção nessa estimativa. Isto porque é tomada a variação nominal a cada fim de ano do patrimônio líquido financeiro e daí é comparada com a sobra total de renda do trabalho, isto é, o saldo final entre todas as receitas e despesas familiares.

Os economistas ortodoxos chamam isso de “poupança”, prefiro denominar investimento. A diferença entre a sobra de renda e a variação da riqueza financeira é considerada a contribuição dos juros compostos. Porém, como essa sobra mensal de renda do trabalho é investida ao longo do ano, há nova entrada a cada mês no processo de acumulação com juros compostos. É complexo separar uma contribuição da outra.

Outra lição de vida financeira é: para trabalhador, vale mais a pena investir na formação escolar e/ou profissional em vez de se arriscar em obter ganhos de capital na alienação de bens e direitos. Esta é a regra de ouro do comércio da casta dos mercadores: “comprar barato e vender caro”. Ele ganha mais com boa reputação profissional.

No caso do investidor brasileiro trabalhador assalariado, a preferência pela liquidez e segurança em renda fixa sempre superou, em longo prazo, a opção por ganhos de capital e dividendos em renda variável. Tem aversão ao risco da especulação com ações ou dólar, e não é expert para fazer investimentos passionais tais como em coleções.

A quadruplicação no número de investidores Pessoas Físicas na bolsa de valores, nos últimos dois anos, foi mera especulação em uma economia com péssimos fundamentos. Deveu-se à passageira fuga de renda fixa para renda variável por causa do juro baixo.

Por obrigação científica, testo todas as hipóteses, mesmo sendo “argumentos de autoridades”. Justamente por isso, obtive o respeito de meus estimados Professores: Conceição, Belluzzo, Castro, Lessa, Cano,entre outros. Tive a sorte de escutar, pessoalmente, de todos eles, a frase generosa dita por mestre sábioa discípulo: –“Em assunto bancário, você pesquisou mais… e me superou”. O mestre se orgulha disso.

Meu livro é uma reflexão crítica à essa ideia de “financeirização”. Nunca a absorvi, embora meus mestres tenham usado a expressão. Enfim, os universitários cientistas necessitam fazer menos citação como “argumento de autoridade” e ter mais reflexão crítica por conta própria!

Download do livro: Fernando Nogueira da Costa. Conduzir para não ser Conduzido – Crítica à Ideia de Financeirização. maio 2021


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