Por mais que eu seja francófilo, não gosto da contraparte do anglicismo, isto é, a galofilia que traduz mondialisation (“l’anglicisme globalisation est parfois aussi employé”) pelo português mundialização. Daí foi um passo só para estender o conceito para financeirização, suposta fase do capitalismo em que as transações e mercados financeiros ganham força no sistema econômico mundial.
A “financeirização no capitalismo contemporâneo” vem das teorias de dois pensadores marxistas sobre o fenômeno: François Chesnais, economista francês, e David Harvey, geógrafo inglês radicado nos Estados Unidos. É uma nova palavra para designar um velho fenômeno socioeconômico. A I e a II Guerra Mundial interromperam com destruição e protecionismo um processo em curso de grande abertura comercial e financeira para o exterior. Foi apenas um intervalo histórico.
Na verdade, o encontro do capital-dinheiro com a força de trabalho livre para se vender por um salário caracteriza a relação de produção capitalista desde que a acumulação primitiva se concluiu no século 18. Por definição, nunca o capital-dinheiro ficou ausente das decisões capitalistas.
Os donos do capital sempre levaram em conta considerações financeiras para decidir a respeito de sua inserção no processo de acumulação. Nada disso é novidade histórica.
O que é novidade na história bancária brasileira é o processo de “bancarização” (perdão pela francofilia) que ocorre desde a virada do século 20 para o 21. Significa o acesso popular a bancos e, portanto, a crédito. É um importante mecanismo institucional de defesa do poder aquisitivo em uma economia que se caracteriza por volatilidade cambial e inflacionária. Busca encerrar a fase de distinção entre “dinheiro de pobre” e “dinheiro de rico” que vigorou fortemente entre 1964 e 1998.
Talvez o fator mais determinante da concentração da riqueza nesse período de “moeda indexada” tenha sido a possibilidade das castas dos guerreiros (militares e atletas), comerciantes (empresários e financistas) e sábios (tecnocratas e sacerdotes) defenderem suas rendas transformadas em saldos bancários com correção monetária.
Os párias “sem-conta”, que não possuíam acesso às contas correntes ou de poupança em bancos, não protegiam seu poder aquisitivo. O Brasil disputava com a África do Sul da época do apartheid racista o primeiro lugar do vergonhoso ranking de concentração de renda até o final dos anos 1990.
É possível delinear o processo através da pouca conhecida estatística do Fundo Garantidor de Crédito (FGC). Ele se iniciou em 1999 para dar proteção até certo valor – atualmente R$ 250 mil – dos depósitos em caso de bancarrota. Referem-se aos depósitos à vista, a prazo e de poupança. Recentemente, tornaram-se também expressivas as Letras do Crédito Imobiliário (LCI) e as Letras do Crédito Agrícola (LCA) com incentivo fiscal.
Os Fundos de Investimento Financeiro (FIF) não são protegidos pelo FGC, pois são segregados das contas dos bancos que cobram taxas para a prestação desse serviço: administração de recursos de terceiros.
A estatística do FGC revela informações inéditas. Nos últimos 16 anos, o número de contas passou de 75 milhões para 209 milhões, ou seja, aumentou 134 milhões em um ritmo crescente por sucessivos mandatos presidenciais: 19 – 33 – 36 – 45 milhões. Como o número final supera o da população brasileira (205 milhões) é evidente que há “dupla-contagem” por CPF.
Mas aí outros números ajudam-nos a interpretar esse fenômeno de “bancarização e financeirização” (sic). Já mostrei em outro artigo – Renda do Capital X Renda do Trabalho: 2003-2015 X 1995-2002 – a Regra de 9, isto é, de cerca de 9 milhões de membros das castas citadas.
A classe A (4,4%) e a classe B (5,6%) somam 10% das pessoas que moram em domicílios cuja renda total é classificada nas faixas superiores. Seus “chefes de famílias” provavelmente estão entre 9.601.162 profissionais com ensino superior completo. Certamente, são os 9% que ganham mais de 5 salários mínimos.
As Faixas A e B1 com [38-100] pontos na Regra de Classificação 2015 da ABEP representam 2 extratos socioeconômicos ordinais com +/- 5% cada um, com renda mensal A (> R$ 16.000) e B1 (> R$ 8.000). Constituem, respectivamente, 3% e 4% dos consumidores e 16% e 12% do consumo. Possivelmente, estão entre os 8.967.859 clientes do Varejo (68%) e Varejo de Alta Renda (32%) dos Fundos e Títulos e Valores Mobiliários, cujas médias de investimentos são, respectivamente, R$ 45.265,78 e R$ 161.952,10.
Somam a esses os 57.505 clientes do Private Banking que têm per capita a média de R$ 12.069.350,71 em investimentos financeiros. São 8.572.627 depositantes (6,6% do total de clientes) que tinham, em junho de 2014, reservas em suas cadernetas de poupança acima de R$ 15.000,00, porém, possuíam 79,8% dos depósitos totais. São 9 milhões participantes em planos individuais de Plano Gerador de Benefícios Livres (PGBL) e Vida Gerador de Benefícios Livres (VGBL).
Portanto, supondo que esses 9 milhões de investidores possuem cada qual cerca de 6 contas per capita – duas contas correntes (depósitos à vista), depósito a prazo (CDBs), depósito de poupança, LCI e LCA –, descontando-as, sobra um número próximo da população em idade ativa (PIA): 152 milhões de pessoas. Daí levanto a hipótese de que toda população economicamente ativa urbana já está “bancarizada”.
Por que esta política pública é importante? Não só pela “financeirização”, isto é, a elevação da relação ativos financeiros / PIB, partindo de 23% para atingir o teto de 32%. Ocorre no ano 2008 com a explosão da crise financeira mundial, quando o ritmo de crescimento econômico passa a oscilar, enquanto o da capitalização por juros compostos se mantém. Quando se considera também os FIFs, o Tesouro Direto, a Previdência Complementar Aberta e Fechada e as ações, a riqueza financeira de Pessoa Física alcança o equivalente a 57% do PIB.
O fato é que a quantidade de contas bancárias aumenta 179% no período 1999-2015, enquanto seus valores nominais elevam-se 611%. O crescimento 2,5 vezes maior dessa acumulação financeira revela a capitalização pelos juros compostos.
Houve enriquecimento financeiro popular? Provavelmente não, pois o valor médio por conta passou de R$ 3.288,55 em 1999 para R$ 8.378,80 para 2015 em termos nominais. Entretanto, em junho deste ano, as 700 mil contas que não estavam protegidas (cada qual com mais R$ 250 mil) representavam só 0,33% da quantidade total, mas registravam 54,55% do valor total!
A dedução é que permaneceu uma brutal concentração financeira, ou seja, a hegemonia trabalhista não entrou em conflito com a acumulação do capital financeiro. Pudera, economistas permaneceram no Banco Central do Brasil fixando a maior taxa de juros no mundo sem o compromisso em obter menor taxa de desemprego.
Crédito da foto da página inicial: EBC
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