No desempenho de minha função de tabelião de notas, observo, com alguma tristeza, confesso, uma curiosidade persistente nos usuários, que me perguntam, frequentemente, “o cartório foi do seu pai?” ou “é verdade que o cartório vai de pai para filho?”.
O questionamento é estranho para alguém provindo de concurso público aberto a todos os bacharéis em Direito, porém compreensível: há situações concretas várias em que a natureza técnico-intelectual da função notarial foi deixada de lado, em benefício da perpetuações de situações estabelecidas, importando menos sua origem que sua legitimidade.
Falo em legitimidade e aqui faço advertência de que seria plenamente possível dar ao notariado feição puramente patrimonial, sem que isso importasse necessariamente em prejuízo à sociedade. É necessário haver maturidade para aceitar a discussão se deveria haver abertura plena da atividade ao mercado, de maneira a permitir o ingresso irrestrito de agentes econômicos nela, tal qual ocorre em tantos outros serviços dos quais nos utilizamos.
O problema é que, ao menos por ora, não foi essa a opção que seguimos e entendo que precisamos ser fiéis a essa realidade. Hoje a função notarial não é comercial, mas intelectual. E afirmo que tal natureza não é recente, mas remonta pelo menos às Ordenações Filipinas.
Já ao seu tempo, os tabeliães de notas davam fé aos negócios privados, embora a maioria não fosse escrita. Além disso, difundiam em fórmulas escritas a cultura jurídica local.[1] Como função complementar, deviam publicar e ler as leis ao povo dentro da frequência determinada pelo monarca.[2]
Eram verdadeiros centros de poder da época, assessores de magistrados e consultores de particulares.
As escrituras eram distribuídas entre os tabeliães do Concelho[3], para evitar que a concorrência entre eles promovesse angariação de clientes contrárias à deontologia e ao interesse geral.[4]
Para as Ordenações, o notário é empregado público, a quem cabe escrever os contratos[5].
Somente o rei poderia criar os cargos, que poderiam ser providos pelo donatário, a quem cabia reclamar ao soberano quando precisasse de notários. [6]
O ingresso na função dava-se por exame a ser realizado no Desembargo do Paço.[7] Entretanto, para começar a exercê-la, precisavam os notários prestar caução.[8]
Deveriam ter um sinal público difícil de imitar[9].
Em dessemelhança ao que ocorre hoje, em que há um regimento estatal de custas, tinham autonomia emolumentar.[10]
Era de sua responsabilidade cuidar do livro de notas e observar seus requisitos formais de escrituração.[11]
Deveria fazer inventário dos livros que recebia para não se responsabilizar pelos descuidos de seu antecessor. [12][13]
Sua idade mínima deveria ser de 25 anos e precisava casar-se em dois anos a partir da investidura, sob pena de perda de delegação.[14]
Era mister que fosse desinteressado, verdadeiro, diligente e perito.[15]
O notário carecia ser versado em gramática, para que não produzisse textos passíveis de dúvidas. Se não fosse versado em Direito, deveria enviar um assunto a um letrado, para que fizesse a minuta.[16][17]
Ao contrário do senso comum, não podiam vender ou deixar para os filhos a delegação, salvo com permissão do rei. [18]
Havia um tratamento quase isonômico entre os tabeliães judiciais e extrajudiciais.[19][20]
Em conclusão, mesmo considerando-se que a atividade notarial pode beneficiar-se do tino empresarial do tabelião, é necessário reconhecer que suas origens apontam para uma substância distinta, de matriz intelectual.
Crédito da imagem da página inicial: Colégio Notarial do Brasil/Seção São Paulo
[1]Cf. A. M. Hespanha, O direito dos letrados no império português, cit. (nota 1. supra), pp. 262.
[2]Cf. M. J. de A. Costa, História do direito português, cit. (nota 20. supra), pp. 259.
[3]Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 85.
[4]Cf. A. M. Hespanha, O direito dos letrados no império português, cit. (nota 1. supra), pp. 262.
[5]Ordenações Filipinas, Livro 2, Título 45, § 15.
[6]J. H. C. Telles, Manual do tabelião, Lisboa, Imprensa Nacional, 1850, pp. 5.
[7]Cf. J. H. C. Telles, Manual do tabelião, cit. (nota 43. supra), pp. 6.
[8]Cf. J. H. C. Telles, Manual do tabelião, cit. (nota 43. supra), pp. 7.
[9]Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 1, § 44; Livro 1, Título 90, §1 e Livro 1, Título 97, §5.
[10]Ordenações Filipinas, Livro 1, Títulos 78, 80 e 90.
[11]Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 78, § 4.
[12]Cf. J. H. C. Telles, Manual do tabelião, cit. (nota 43. supra), pp. 9.
[13]Interessante notar que essa disposição, de utilidade inegável, faz falta nos tempos hodiernos, em que surgem diversas discussões sobre o tema entre o notário interino e aquele que vai substituí-lo em razão de aprovação em concurso público.
[14]Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 94, §§ 25 e 42.
[15]Ordenações Filipinas, Livro 3, Título 60, §3.
[16]Cf. J. H. C. Telles, Manual do tabelião, cit. (nota 43. supra), pp. 12.
[17]Tal disposição não encontra guarida no estágio atual de compreensão da função, vez que ela é dotada de natureza científica. Em que pese essa ordem de ideias, é inegável ser um problema que o notário não possa servir-se de sócios – como ocorrem em escritórios de advocacia – para auxílio em temas de naturezas diversas, que exigem especialização nos estudos.
[18]Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 96, §2; Livro 2, Título 28; e Livro 4, Título 97, §12.
[19]Ordenações Filipinas, Livro 1, Título 79.
[20]Tal tratamento pode justificar a posição de inferioridade funcional que o notário porta hoje em relação aos juízes corregedores, em que pese a natureza científica da função, garantida pela Lei n. 8.935/94.
Deixe um comentário