A questão da previdência entrou definitivamente no centro do debate político e econômico como um elemento importante da agenda de reformas conservadoras. Tal discussão oscila entre debates contábeis, ideológicos e até demográficos. Sem diminuir a importância de tais questões, é curioso notar que, ao se tratar de um tema eminentemente econômico, o que menos se observa é, exatamente, o aprofundamento do debate, e confronto de ideias, segundo abordagens teóricas distintas.
Entretanto, um ponto inicial, e possivelmente o mais fundamental, aquele que uma vez compreendido elimina boa parte dos mal-entendidos, é explicar o que é um sistema de previdência público de repartição[1].
Tal sistema é um programa de tributação e transferência, ou seja, são cobrados impostos e contribuições de um subconjunto da sociedade e tais valores são transferidos para outro subconjunto, composto por aposentados e pensionistas. A forma como o Estado arrecada as receitas que serão transferidas para pensionistas e aposentados depende de uma economia política específica do arranjo de contribuições previdenciárias: as receitas da previdência podem advir de diferentes formas de impostos dependendo de uma decisão da sociedade pactuada através de seus corpos de deliberação e decisão política.
Tais contribuições podem incidir, majoritariamente, sobre lucros, por exemplo (e não sobre rendimentos de trabalhadores ativos), ou sobre o consumo através de impostos indiretos (que são pagos indistintamente por ativos e inativos). Entretanto, pode-se dizer que, usualmente, mas não exclusivamente, as receitas do sistema são obtidas por contribuições feitas por trabalhadores ativos, sendo esta forma de contribuição em boa medida relacionada à própria formação histórica dos sistemas de previdência pública, como se discutirá mais à frente.
Um primeiro ponto importante a se observar é que se, por um lado, as contribuições para a previdência podem elevar a carga tributária, as suas “despesas”, ou pagamentos, retornam à sociedade em quase sua totalidade. Como o próprio nome deixa claro, as transferências da previdência apenas realocam renda dentro da sociedade e seu impacto líquido sobre o conjunto desta é praticamente zero, sendo a diferença composta pelos reduzidos gastos operacionais do sistema de previdência.
Assim, em princípio, a carga tributária requerida para o pagamento de benefícios da previdência não é uma subtração de renda da “sociedade” como um todo, e sim sobre um grupo da sociedade e redistribuído a outro.
Esse tipo de sistema previdenciário pode ensejar arranjos de tributação e transferências que estimulem o nível de atividade econômica. Numa abordagem da demanda efetiva (ou Keynesiana/kaleckiana), o produto e emprego dependem da demanda efetiva, ou seja, do resultado dos gastos (e tributação) do governo, setor privado e setor externo, sem que haja nenhuma tendência natural ao pleno emprego dos fatores de produção. Neste caso, há distintas formas de impacto de um determinado desenho de sistema tributário sobre o produto. Quando ocorre a cobrança de impostos sobre indivíduos de maior propensão a poupar e as transferências são feitas para aqueles com maior propensão a gastar o sistema tributário tem características expansionistas. Arranjos de previdência assim organizados, mais generosos e distributivistas, teriam um impacto positivo sobre o nível de renda!
Como dito anteriormente, tais conclusões só se tornam claras à medida que a verdadeira natureza de um sistema público de contribuição é explicitada, afastando-se do debate comparações ou “metáforas” indevidas que remetem a sistemas de seguro individual; sistemas nos quais os indivíduos acumulariam riqueza em seu período ativo para gastá-los no período de inatividade.
De acordo com tal “metáfora” os esquemas de repartição, e especificamente os pagamentos dos ativos à previdência, emulariam as decisões de poupança relacionadas ao ciclo da vida. A contrapartida contábil desta inadequada “metáfora” do seguro seria a acumulação de “passivos” por parte do responsável pelos pagamentos previdenciários, o Estado.
Tal incompreensão da verdadeira natureza do sistema previdenciário não é nova; é tão antiga quanto a própria origem do sistema. Bismarck, o pioneiro na implementação da previdência na Alemanha, refutava a ideia de vinculá-la a um seguro pessoal, negando, assim, a própria razão de ser: a caracterização do Estado como benevolente, que cuida do bem-estar dos seus cidadãos.
Outro marco na implantação de esquemas de previdência, o Beveridge Report[2], reconhecia que um sistema público se baseava na capacidade do Estado de tributar para prover recursos aos pensionistas e aposentados, e que tal esquema não tinha nenhuma relação com a ideia de acumulação pessoal de ativos, que caracteriza um seguro. Entretanto, a utilização de uma “ficção de seguro”, ou seja, a cobrança de contribuição individual que estaria relacionada aos pagamentos futuros de aposentadorias seria uma ferramenta politicamente útil para conscientizar os trabalhadores acerca dos custos do sistema.
O próprio economista John Maynard Keynes reconhecia que a forma “ficcional” como se apresentava um sistema de contribuições pessoais relacionado a pensões futuras, era, simplesmente, uma característica de natureza política que tinha o objetivo de lembrar aos trabalhadores que benefícios só seriam legítimos se tivessem como contrapartida uma contribuição prévia.
Essa ficção alcançou seu status teórico mais sofisticado na reflexão do economista Paul Samuelson que desenvolveu um modelo no qual contribuição e benefício se relacionam por uma “taxa de retorno” (que chamou de juros biológicos) igual ao crescimento dos salários.
A tentativa de apresentar uma formalização de um sistema de transferências públicos através de uma “ficção do seguro” foi veementemente contestada tanto por economistas simpáticos a tal esquema, como Abba Lerner, quanto por críticos, como Milton Friedman. Ambos se opunham à tentativa de representar de forma equívoca um sistema público de tributação e transferência com o objetivo de transformá-lo politicamente mais “aceitável”.
Uma vez entendida a verdadeira natureza do sistema torna-se mais fácil entender o debate que cerca a questão do pagamento de pensões no futuro.
Não há discordância que quanto maior for o produto per capita no futuro maior será o produto a ser repartido. Repartição esta que é feita, entre indivíduos ativos e inativos, no sistema público usual, segundo algum critério de natureza sociopolítica. Segundo a abordagem da demanda efetiva, como não existe uma tendência da economia de chegar ao pleno emprego, políticas de estímulo à demanda efetiva fazem com que aumente a renda e o consumo agregado escapando-se de um trade off que poderia ocorrer caso se registrasse um maior grau de dependência (ou a relação) entre trabalhadores inativos por ativos. Assim, no agregado pode-se aumentar o consumo mantendo-se os benefícios aos trabalhadores inativos com políticas de estímulo à renda e ao emprego.
Logo, o debate de previdência não independe das formas distintas de abordagens teóricas adotadas para a compreensão do funcionamento de uma economia capitalista e não é, simplesmente, a consequência inelutável de cálculos demográficos. Estes fornecem as características populacionais futuras que influenciarão a capacidade laborativa da população, mas a produção a ser repartida por tal população depende de como se interpreta o processo de determinação do produto e da acumulação de capital.
Uma vez compreendida que a previdência é um sistema de contribuição e transferência em um dado período de tempo, e não um sistema de seguro intertemporal, revela-se a possível natureza redistributiva que envolve o seu debate, e os ataques que sofre por certos setores da sociedade. Por exemplo, uma elevação dos salários recebidos ao longo da vida de um trabalhador, em consequência da existência de um sistema de previdência de repartição, financiado em alguma medida pela taxação de lucros, pode causar uma redistribuição entre lucros e salários em favor do último, caracterizando uma situação redistributiva a favor dos trabalhadores.
Vale lembrar, também, que mudanças demográficas não operam apenas na elevação de gastos. À medida que a população envelhece, uma série de gastos relacionados à infância e outros serviços como, por exemplo, segurança, se reduz. Há que se considerar ambos os efeitos e não apenas aqueles que representam aumento de gastos e transferências[3].
Certamente, seria contraditório com a abordagem da demanda efetiva defender que uma redução do gasto não teria um efeito contracionista sobre o produto. Apenas queremos ressaltar que os fatores demográficos colocam aos gestores de política econômica opções de alocação de recursos que devem ser levadas em conta na consecução do objetivo de maximização do bem-estar da sociedade, no qual se inclui a manutenção do alto emprego.
A discussão importante a ser feita diz respeito a escolhas da sociedade sobre a trajetória do desenvolvimento econômico e divisão do produto social. Se, por um lado, a metáfora do seguro foi imposta por formuladores de sistemas públicos de previdência como uma forma de mascarar sua verdadeira natureza redistributiva, por outro é forçoso reconhecer que os trabalhadores aderiram a esta metáfora com a expectativa de que uma ideia de contribuição presente para futuro recebimento de renda fosse tornar mais rígido o pacto político de manutenção do benefício previdenciário.
As propostas de reformas correntes, não apenas no Brasil como em outras partes do mundo, revelam que a estratégia dos trabalhadores se mostrou equivocada. Uma vez aceita a verdadeira natureza previdenciária de cobrança, contemporânea, de imposto, e transferência via pagamento de benefício, a ideia de uma “quebra da previdência” perde seu sentido lógico. Afinal, isso só seria possível caso houvesse uma acumulação de ativos que deveria fazer frente a compromissos fixos de remuneração futura e uma incompatibilidade atuarial entre tais ativos e compromissos explicitaria tal “quebra”.
Num sistema de tributação e transferência não só a ideia é fora de propósito como também esforços intertemporais de “consertar” uma crise que não pode existir em um esquema contemporâneo são também um contrassenso. É claro que medidas como, por exemplo, a isenção tributária sobre as contribuições de patrões, pode causar um desequilíbrio entre receitas e despesas, mas sua “solução” deve ser um item do conjunto da política fiscal de um dado período, que se constitui de decisões de gasto, tributação e análise dos impactos macroeconômicos de tais decisões.
Como defendido neste artigo, a preocupação do gestor de política econômica deve ser com a manutenção de um nível de demanda efetiva compatível com um baixo desemprego, elevada ocupação da capacidade produtiva e, indiretamente, acumulação de capital com impacto sobre a elevação da renda per capita no futuro. Cortes de gasto presentes vão na contramão de tal lógica.
Como diz o dito popular no idioma inglês: “If it ain´t broken don´t fix it”, ou “se não está quebrado não conserte”. Neste caso, não apenas a ideia de uma quebra do sistema é equivocada como a sua suposta correção da forma como está sendo proposta traria efeitos distributivos regressivos, socialmente prejudiciais aos trabalhadores e indiretamente nefastos à acumulação de capital no longo prazo. A suposta solução seria um enorme problema.
* O autor agradece ao Franklin Serrano pelos comentários sobre o texto.
Notas:
[1] A discussão que se segue baseia-se no capítulo 1 do livro de autoria de Sergio Cesaratto “Pension Reform and Economic Theory”. Uma referência importante para explicitar as diferenças teóricas por trás do debate é o artigo do economista Massimo Pivetti “The ‘Principle of Scarcity’, Pension
Policy and Growth” publicado no Review of Political Economy, Volume 18, Número 3, de Julho de 2006.
[2] Um documento preparado em 1942 pelo economista William Beveridge e que estabeleceu os fundamentos do sistema de bem estar social na Inglaterra do pós guerra.
[3] Um exemplo de exercício nesta direção é feito no Working Paper do FMI de 2005 “Aging: Some Pleasant Fiscal Arithmetic” de autoria de David Hauner
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