Aproximam-se as eleições de 2018 e as pré-candidaturas vão apresentando suas discussões programáticas e um tema que, normalmente, é sempre colocado como secundário é a questão agrária. A força política da bancada ruralista mostra que este não deve ser considerado um debate acessório, particularmente para o campo progressista. O golpe de 2016 só foi possível porque o Brasil nunca ousou de fato romper com a República Velha: os coronéis descritos por Victor Nunes Leal na sua obra seminal, Coronelismo, Enxada e Voto, seguem junto com as elites paulistas sabotando qualquer tentativa de desenvolvimento brasileiro desde 1932.
O livro de Alceu Luís Castilho, O partido da terra: como os políticos conquistam o território brasileiro, reforça a necessidade de se discutir uma ruptura com este setor que em aliança também com as bancadas da bala e da Bíblia tem promovido grandes retrocessos no Brasil, da EC nº 95 à antirreforma trabalhista. José Eli da Veiga já argumentava da necessidade de se realizar uma ruptura sociopolítica para destravar o desenvolvimento econômico. Esta ideia de ruptura também estava presente nas teses do economista conservador norte-americano Walt Whitman Rostow, que defendia uma a ruptura com as elites tradicionais como uma das pré-condições para o desenvolvimento. Deste modo, a reforma agrária é uma condição política para que o Brasil torne-se uma nação desenvolvida.
Argumentos econômicos não faltam para defender a necessidade de uma mudança radical na estrutura fundiária. Diversos estudos mostram que as grandes propriedades possuem custos crescentes de escala. Custos de gerenciamento, logística e mão de obra, a imprevisibilidade meteorológica, a volatilidade dos preços internacionais, além do descolamento entre o tempo de trabalho e o tempo de produção são alguns fatores que nos permitem afirmar que o setor agrícola não possui características de uma atividade capitalista no senso comum.
Ademais, todas as nações cujo padrão de desenvolvimento é idealizado pela grande maioria da sociedade brasileira passaram por um processo, quase sempre radical, de democratização do acesso à terra. Se não tem MST nos EUA é porque lá houve alguma reforma agrária ainda no século 19. Também há análises que demonstram a relação positiva entre distribuição de ativos fundiários e crescimento econômico.
Outro aspecto econômico relevante é o viés de combate à inflação de uma política de reforma agrária. A demanda por alimentos é quase inelástica, a variação nos preços deste mercado explica-se, em parte, por um problema de oferta insuficiente para atender à demanda, mas também pela vinculação de determinados produtos aos mercados internacionais de commodities. Logo, a melhor maneira de evitar-se uma inflação de alimentos é ao mesmo tempo buscar desvincular os preços dos alimentos dos mercados externos e aumentar a oferta de alimentos para o mercado interno. A reforma agrária cumpre ambos os papéis.
O Censo Agropecuário do IBGE de 2006 (ainda não foram divulgados os resultados do Censo de 2017) nos mostra que a agricultura familiar é responsável pela maior parte do alimento na mesa do brasileiro. Logo, aumentar a quantidade de produtores familiares pela via da reforma agrária amplia a oferta de alimentos. Ao mesmo tempo, a grande propriedade produz principalmente para o mercado externo e não afeta sobremaneira a curva de oferta interna de alimentos. Logo, mesmo nos produtos vendidos no Brasil, o consumo interno não afeta seu preço, mas sim as variações no mercado internacional. Deste modo, mais produtores voltados apenas ao mercado interno também é importante para garantir uma adequada oferta de alimentos a preços acessíveis à maioria dos trabalhadores do país.
Em realidade, os presidenciáveis deverão optar entre dois modelos agrícolas completamente distintos. De um lado o agronegócio das monoculturas, do deserto verde, do uso intensivo dos agrotóxicos e da manipulação genética de impactos, no mínimo, incertos. Do outro, a agricultura familiar, a reforma agrária, as populações tradicionais, a agroecologia e a produção de alimentos para o mercado interno.
Hoje no Brasil as áreas voltadas para alimentos de consumo interno da população brasileira perdem espaço para culturas de exportação ou que produzem insumos não alimentícios para outras indústrias. Os gráficos abaixo, elaborados a partir da Pesquisa Agrícola Municipal do IBGE com dados entre 2002 e 2016, comparam séries históricas de áreas plantadas e quantidade produzida dos dois produtos mais elementares da dieta do brasileiro, arroz e feijão, com as áreas plantadas e quantidade produzida da soja (voltada ao mercado externo) e cana-de-açúcar (voltada tanto para a produção do açúcar, boa parte exportada, como para a produção do etanol, o álcool combustível).
Em números, tínhamos em 2002 uma área plantada de 3.171.955 hectares de arroz, 4.321.809 hectares de feijão, 5.206.656 hectares de cana-de-açúcar e 16.376.035 hectares de soja. Em 2016, os hectares plantados eram 2.004.643 de arroz, 2.946.801 de feijão, 10.245.102 de cana-de-açúcar e 33.309.865 de soja. Uma diminuição da área plantada dos produtos da dieta básica do brasileiro num período em que a população saltou de mais de 176 milhões para cerca de 202 milhões de pessoas. Isto evidencia um modelo de desenvolvimento adotado pelo país.
Fonte: IBGE (SIDRA). Pesquisa Agrícola Municipal
Fonte: IBGE (SIDRA). Pesquisa Agrícola Municipal
Fonte: IBGE (SIDRA). Pesquisa Agrícola Municipal
O argumento subsequente seria de que a diminuição da área plantada seria compensada por um aumento da produtividade. Independentemente de qualquer melhoria na produtividade, os gráficos acima deixam claro que a quantidade produzida dos alimentos básicos da dieta do brasileiro tem diminuído (no caso do feijão) ou se mantido estável (no caso do arroz) mesmo diante do crescimento populacional, ao contrário da cana-de-açúcar e da soja. Em números, saímos de 10.445.986 toneladas de arroz, 3.064.228 de feijão, 364.389.416 de cana-de-açúcar e 42.107.618 de soja em 2002 para 10.622.189 toneladas de arroz, 2.615.832 de feijão, 768.678.382 de cana-de-açúcar e 96.296.714 de soja em 2016.
É preciso, portanto, a construção de novos paradigmas. Na Índia, por exemplo, temos também a agricultura sustentável gerida pela comunidade em Andhra Pradesh, onde 300 mil fazendeiros fizeram uma opção alternativa à revolução verde. Ali foi desenvolvida uma plataforma que combinava métodos cientificamente comprovados, conhecimentos autóctones e sabedoria tradicional.
Outro exemplo importante é o caso de Cuba. Quando do colapso soviético, o país tinha 57% de sua demanda de alimentos atendida pelo exterior com 30% de suas terras agriculturáveis dedicadas exclusivamente à cana-de-açúcar. Cuba não possuía soberania alimentar e era completamente dependente do comércio exterior. O país montou um sistema baseado em cooperativas de créditos e serviços e também promoveu uma mudança radical na forma de abordar a agricultura com um papel fundamental da agroecologia nesta transição. O resultado foi um crescimento per capita de 4,2% ao ano da produção de alimentos, o maior em toda a América Latina e Caribe.
E caso alguém se aventure a dizer que não há público para estas alternativas, se comece com a regularização dos territórios indígenas, quilombolas e de outras populações tradicionais. É indispensável que se efetive a regularização fundiária dos mais de 400 mil ocupantes e cerca de 250 mil produtores sem área identificados no último Censo e que se ofereça aos quase 150 mil parceiros a oportunidade de se tornarem assentados.
Por fim, como a lei prevê que a reforma agrária acabe, além do latifúndio, com o minifúndio, temos um pouco mais de um milhão de produtores com menos de 2 hectares para assentar. Somados às mais de 100 mil famílias acampadas, temos demanda mais que suficiente para um terceiro plano nacional de reforma agrária. Quem sabe assim a reforma agrária deixe de ser perene no Brasil e o índice de Gini de concentração da terra finalmente apresente uma melhora.
Crédito da foto da página inicial: EBC
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