De maneira geral, os dez primeiros anos do século 21 apresentaram uma evolução positiva para a estrutura social brasileira. Mesmo com diferentes critérios metodológicos, vários estudos apontaram para o fato de que houve redução das situações de pobreza e pobreza extrema entre 2000 e 2010[1].
A discussão sobre o quanto esse movimento representou a expansão de “classes médias”, ou a diminuição da desigualdade social, é bem mais controversa, mas há certo consenso de que por uma série de razões – com destaque para os aumentos reais do salário mínimo, a ampliação do crédito, os programas assistenciais e de transferência de renda, além da diminuição do desemprego (com aumento da formalização) – houve redução do número de famílias em condição de pobreza e miséria.
Existem poucos estudos, porém, que abordam essa dinâmica para a população com deficiência, ou seja, aqueles com diferentes níveis permanentes de limitação física, sensorial (visual ou auditiva) e/ou mental (intelectual). Assim, na primeira parte desse texto apresenta-se a evolução da estrutura social deste segmento populacional entre 2000 e 2010, quando ocorreram os dois últimos Censos Demográficos (a temática da deficiência, em função de limitações estatísticas, não está incluída na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, PNAD).
Para tanto, utiliza-se a metodologia desenvolvida por Quadros (2008), cuja ferramenta de análise parte da estrutura ocupacional para definir o que seriam “padrões de vida” cujas linhas de corte baseiam-se no valor do salário mínimo (portanto, bastante sensíveis às mudanças da última década e meia).
Na segunda parte, procura-se fazer uma breve discussão sobre a contribuição do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para as mudanças da estrutura social, particularmente nas camadas mais pobres e vulneráveis da população com deficiência.
Fixado constitucionalmente no valor de um salário mínimo, o BPC é recebido por cerca de 4 milhões de pessoas entre idosos com mais de 65 anos e pessoas com deficiência (cuja principal condição de elegibilidade, extremamente restrita, é comprovar renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo). No caso daqueles com deficiência, são aproximadamente 2,2 milhões de pessoas que atualmente recebem o benefício[2], cujo papel na manutenção de uma condição de vida minimamente aceitável é importante e até mesmo decisivo, dados os elevados custos que podem estar associados às situações da deficiência.
1.Evolução da estrutura social da população com deficiência
A apresentação da estrutura social da parcela da população que declarou algum tipo de deficiência ou incapacidade funcional nos últimos Censos Demográficos, em 2000 e 2010, conforme mencionado, será feita com base na metodologia desenvolvida por Quadros (2008). Antes, porém, são necessárias algumas observações tanto em relação aos critérios utilizados para definição da deficiência nos Censos como para metodologia de estratificação social citada acima.
Os dados apurados nos Censos de 2000 e 2010, no que tange à questão da deficiência, avaliaram, na verdade, os diferentes níveis de dificuldade das pessoas para realizar atividades como andar, subir escadas, ouvir e enxergar, além da deficiência mental/intelectual. Em estudos anteriores, temos defendido que uma análise mais “refinada” desta camada populacional, principalmente no que diz respeito ao acesso ao mercado de trabalho, deve priorizar o segmento com “total” ou “grande” incapacidade para andar, ouvir e/ou enxergar, além das pessoas com deficiência intelectual[3].
Separamos, assim, tal contingente daqueles que disseram ter apenas “alguma” dificuldade para realizar tais ações.
Essa opção se justifica, no nosso entendimento, para que se tenha uma ideia mais clara da situação social das pessoas que, teoricamente, podem ser associadas às condições “convencionais” de deficiência física, visual, auditiva e mental. O público-alvo de políticas públicas, como as cotas no mercado de trabalho e mesmo a concessão de benefícios, é esta camada populacional com maior limitação funcional para realizar as atividades de vida diária. Dessa forma, nos dados abaixo consideramos “pessoas com deficiência”, como assinalado acima, aqueles com “total” ou “grande” limitação para andar, ouvir e/ou enxergar, além das pessoas com deficiência mental/intelectual.
Em relação à metodologia de estratificação social, partiu-se das possibilidades (e limitações) dos inquéritos domiciliares realizados pelo IBGE (Censo e Pnad) para construção de uma estrutura sócio-ocupacional (Quadros, 2008).
Consideraram-se, em primeiro lugar, as diferentes formas de situação ocupacional, como por exemplo: empregadores, os trabalhadores em atividades agrícolas e a massa de trabalhadores urbanos, dentre outros. Definidos grupos ocupacionais, introduziu-se o salário mínimo como referência para linhas de corte. A primeira delas partiu do pressuposto de que aqueles com renda inferior ao salário mínimo estariam numa categoria chamada de “miseráveis”. Subindo na escala social, adotaram-se múltiplos deste piso para as demais linhas de corte, associando às faixas de rendimento distintas representações de “padrões de vida”.
Assim sendo, tendo como base o salário mínimo aproximado de 2004 (R$ 240,00), quando foi desenvolvida a metodologia, foi estabelecida a seguinte divisão:
Tais valores, obviamente, são corrigidos anualmente pelo INPC (Índice Nacional de Preços ao Consumidor) para atualizar as linhas de corte. Ademais, no caso das famílias, optou-se por classificar todos os componentes das mesmas pelo rendimento do membro melhor situado. Tal alternativa visou a minimizar problemas relacionados a questões demográficas – como a redução no tamanho médio das famílias – e, ao mesmo tempo, mostrou-se bastante sensível aos cenários de mobilidade social, “ao captar qualquer mudança significativa para melhor (ou pior) na situação dos membros da família” (Quadros, 2008, p. 26).
Feitos tais esclarecimentos, a tabela 1 apresenta a estrutura social da população que declarou algum tipo de deficiência em 2000:
Naquele ano, cerca de 7 milhões de pessoas, 4,2% do total da população brasileira, declarou um nível grave de deficiência ou incapacidade funcional. Quando se observa a distribuição deste contingente pelas estratificações ou “padrões de vida”, chama atenção que mais da metade das pessoas com deficiência estava em famílias vivendo em condição de “miserabilidade” (3,8 milhões de pessoas).
Deve-se considerar que, em função das elevadas taxas de desemprego e da insuficiência de programas sociais, dentre outros aspectos, a situação era também muito ruim para o conjunto da população, em que se observava um percentual de 40,5% do total nessa última faixa de renda (54,9%, no caso das pessoas com deficiência). Porém constata-se a participação superior daqueles com grandes limitações físicas, sensoriais e mentais no estrato de “miseráveis”, além da magnitude extremamente expressiva.
No Censo Demográfico de 2010 um contingente maior de pessoas declarou ter alguma deficiência ou incapacidade funcional grave. Foram 12,7 milhões, ou 6,7% da população brasileira. Vejamos a distribuição deste contingente na estrutura social:
O número de pessoas com deficiência associadas a um “padrão de vida” de “miseráveis” recua fortemente: 2,8 milhões em termos absolutos (47 pontos percentuais). Considerando o total de 12,7 milhões de pessoas com deficiência severa, pouco mais de 1 milhão (8,4%) estavam ainda no estrato social mais baixo em 2010.
Mais uma vez, esse foi um processo que ocorreu para a população como um todo e se vislumbra tanto por essa metodologia como por outros estudos. Porém, também para aqueles com algum tipo de deficiência, é impressionante constatar o movimento positivo pelo qual passou a estrutura social brasileira na primeira década do século 21.
2.O Benefício de Prestação Continuada
A diminuição expressiva do número de pessoas com deficiência vivendo em famílias em condição de miséria se deve a um conjunto de fatores já elencados, como as mudanças positivas no âmbito do mercado de trabalho e a ampliação dos programas sociais, dentre outros. Mas, no caso deste grupo populacional, é razoável supor que, em alguma medida, esta melhora na condição social, especialmente daqueles em situação mais vulnerável, deveu-se à ampliação na cobertura do Benefício de Prestação de Continuada (BPC).
Este benefício tem previsão constitucional no artigo 203, inciso V, da Carta Magna, que garantiu “um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família” (Brasil, 1988). Foi posteriormente regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (8.742/93) e outros Decretos Federais, com destaque para o 6.214 de 2007 (que trouxe novos conceitos e permitiu que o benefício pudesse ser cessado em caso de trabalho remunerado; e retornado em caso de perda do mesmo).
Em 2000, o BPC era recebido por pouco mais de 800 mil pessoas com deficiência. Há um crescimento praticamente contínuo nessa rede de proteção social, atingindo-se 1,7 milhão de beneficiários em 2010 (Brasil, 2014). Como vimos acima, no mesmo período 2,8 milhões de pessoas com deficiência deixaram a condição de pobreza extrema. Não é possível mensurar com precisão o quanto deste movimento ocorreu em função do BPC, mas é inegável que ele contribuiu de alguma forma.
Ao mesmo tempo, a permanência de 1 milhão de pessoas com deficiência vivendo em famílias em condição de “miserabilidade” em 2010 mostra que esta rede de proteção ainda deixa de fora indivíduos que dela necessitam Isso reforça os argumentos de autores que apontam para as restrições e injustiças dos critérios de elegibilidade para concessão do benefício[4], o que exigiria até mesmo uma discussão no sentido de sua ampliação.
Considerações finais
Assim como ocorreu para o conjunto da população brasileira, houve melhora significativa da estrutura social para o contingente de pessoas com deficiência entre 2000 e 2010. Em particular, destaca-se a acentuada diminuição do número de pessoas vivendo em condições de extrema pobreza. Ao garantir um salário mínimo para pessoa com deficiência física, visual, auditiva e/ou mental sem possibilidades de prover o autossustento, o BPC contribuiu para esse processo, tendo em vista o aumento na rede de cobertura no período considerado.
Porém, infelizmente pairam incertezas sobre a continuidade desse movimento. Na atual conjuntura política, ganham força posições que defendem um “novo pacto social” para o país, particularmente no que se refere aos direitos garantidos na Constituição de 1988.
Gambiagi (2014), por exemplo, “defende que se emende a Constituição para que o piso assistencial seja diferente do piso do mercado de trabalho e do previdenciário (salário mínimo), passando o benefício de prestação continuada a ser reajustado pelo INPC” (Nery, 2015). Quando comparado ao Bolsa Família, o BPC é um programa relativamente mais caro e que atende um número menor de pessoas. Assim, pela ótica liberal, que privilegia o maior grau de focalização ao menor custo fiscal, existiriam argumentos para uma revisão do benefício, ainda mais na atual configuração de forças do nosso sistema político.
Portanto, é preciso atenção, em especial do movimento social das pessoas com deficiência, para que não haja retrocessos nessa política de assistência social. Mais do que isso, a atual Lei Brasileira de Inclusão (13.146/2015) prevê estímulos, como o auxílio-inclusão, para que a pessoa com deficiência deixe de receber o BPC e ingresse no mercado de trabalho[5].
Assim, manter e ampliar a cobertura do BPC para aqueles que ainda dele necessitam, e regulamentar o auxílio-inclusão, são pautas importantes para continuidade no processo de melhora da estrutura social da população com deficiência.
Referências Bibliográficas
BRASIL, 2014. Secretaria Nacional de Assistência Social – Departamento de Benefícios Assistenciais. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Garcia, Vinicius e Maia, Alexandre. Características da participação das pessoas com deficiência e/ou limitação funcional no mercado de trabalho brasileiro. Revista da ABEP (Associação Brasileira de Estudos Populacionais). Volume 31, n. 2, p. 395-418, jul./dez., 2014.
Garcia, Vinicius. Características ocupacionais, nível de rendimentos e perfil social dos trabalhadores com deficiência. Revista da ABET (Associação Brasileira de Estudos do Trabalho), Volume 12, n. 2, p. 63-77, 2014.
GIAMBIAGI, F. Salário-mínimo – razões e bases para uma nova política. In: Giambiagi, F.; Porto, C. (Org.). Propostas para o Governo 2015/2018. Rio de Janeiro: Elsevier, 2014.
Gugel, Maria Aparecida. Benefício de Prestação Continuada, Trabalho e Auxílio Inclusão. Mudanças da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. AMPID, Brasília, 2016.
Ivo, Anete e Silva, Alessandra – O hiato do direito dentro do direito: os excluídos do BPC. R. Katál., Florianópolis, v. 14, n. 1, p. 32-40, jan./jun. 2011.
Neri, Marcelo. A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo, Saraiva, 2012.
Nery, Pedro Fernando. O programa social mais caro do Brasil. Sobre o BPC e uma comparação com o Bolsa Família. Boletim Legislativo N. 16, Brasília, 2015.
Pochmann, Márcio. Nova classe média? O trabalho na base da pirâmide social brasileira. São Paulo, Boitempo, 2012.
Quadros, Waldir. A evolução da estrutura social brasileira – notas metodológicas. Texto para Discussão n. 147, IE/Unicamp, 2008.
Silva, Janaína e Diniz, Débora – Mínimo social e igualdade: deficiência, perícia e benefício assistencial na LOAS. R. Katál., Florianópolis, v. 15, n. 2, p. 262-269, jul./dez. 2012.
Souza, Jessé. A Tolice da Inteligência Brasileira, São Paulo, LeYa, 2015.
Souza, Jessé. Os batalhadores brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2010/12.
[1] (Ivo e Silva, 2011) e (Silva e Diniz, 2012).
[2] Gugel, 2016.
[3] Pochaman (2012), Neri (2012), Souza (2010/2012). Para uma discussão crítica acerca desse tema sugere-se Souza (2015) – A Tolice da Inteligência Brasileira, São Paulo, LeYa.
[4] Dados de 2014. Secretaria Nacional de Assistência Social – Departamento de Benefícios Assistenciais. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
[5] Garcia (2014); Garcia e Maia (2014).
Crédito da foto da página inicial: Núcleo Editorial/Flickr/CC
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