A política da política monetária

Tem sido frequente o debate sobre as taxas de juros praticadas pelo Banco Central. Não é para menos: nossa taxa de juros básica é de longe a maior, em termos reais, entre os quatro cantos do globo.

Esse, entretanto, não se trata de um debate público como outros ao redor de questões polêmicas ou que exibem contrariedades claras e demarcadas. O que temos assistido por parte dos economistas e dos editoriais jornalísticos é uma defesa política da ação do Banco Central. O pior tipo de política:  uma que ignora os efeitos perversos sobre a coletividade, premiando particularismos que, por vezes, se expressam apenas como ignorância.

Há em curso uma narrativa que sustenta o insustentável e que não se vê constrangida nem mesmo pelos fatos. Propomos que brevemente recuperemos essa linha discursiva:

No começo da intentona monetarista, os especialistas afiançavam a hipótese de que a inflação que surgiu ao fim da pandemia era derivada do esforço fiscal e monetário realizado pelos governos para amenizar as consequências econômicas da COVID. Depois, o aperto acelerado do crédito seria justificável pela elevação dos preços de energia e alimentos causados pela guerra Russo-Ucraniana: um choque exógeno. Portanto, imune a decisões do nosso bravo Comitê de Política Monetária.

Agora, mesmo na hipótese de desarranjos na oferta causados pela quebra continuada do horizonte de investimentos necessários para repor o estoque de capital perdido na pandemia, as explicações rondam o absurdo.

O Jornal Valor soltou um editorial criticando a indicação de Gabriel Galípolo para a diretoria do BC, e não contente se meteu a centelhar uma explicação curiosa sobre a relação entre a redução dos juros e a inflação de oferta – a qual repelem prontamente:

“O governo não produziu até hoje um diagnóstico coerente. Afirmar que a inflação não é de demanda, logo é de oferta, não encontra respaldo nos fatos. Supô-la significa que o remédio dos juros altos é incorreto e os preços virão abaixo de alguma outra forma. Se for assim, qual é o sentido de baixar os juros e incentivar o consumo, se o problema é, por definição, de gargalos de oferta?”

Como se não fosse suficiente, o editorial prossegue repercutindo as especulações do BC a respeito da resiliência da alta de preços, embora haja indícios claros de que a tendência é de declínio da taxa de inflação:

“Na ata divulgada ontem, o BC perambula por caminhos outros, sem chegar a uma conclusão. Especula, por exemplo, com o fato de os juros neutros terem subido com a perspectiva de deterioração fiscal e de expectativas desancoradas, motivos pelos quais a carga atual da Selic não estaria tendo todos os efeitos esperados. Já o governo não apenas não tem uma resposta, mas sequer se coloca a pergunta.”

É notável que a premissa contenha em si a conclusão sem, é claro, explicitá-la. Os juros “neutros” subiram pelo descontrole fiscal, pela elevação da dívida pública. Interessante que, a despeito da bagunça do último ano do governo Bolsonaro, fechamos em superávit com redução na relação dívida/PIB. De onde vem a desconfiança? Da ruptura do Teto de Gastos pelos esforços do Orçamento de Guerra ou da inconsistência da regra fiscal anterior? O editorial deixa no vácuo, esperando que os germes da ignorância lançada se multipliquem. Mas o que seriam os tais juros neutros? O detalhamento é evitado por uma simples razão: não há malabarismo verbal que seja capaz de dar conta de explicar juros reais superiores a 9% ao ano em uma economia hígida e detentora de robustas reservas em moeda conversível.

O mais assustador vem agora: mesmo no caso de uma inflação de oferta, reduzir os juros provoca mais inflação. Será? Vejamos: a oferta agregada é resultado das decisões de investimento tomadas no passado que desatam elevações na produção de bens e serviços. A elevação das taxas de juros encurta o horizonte de investimentos já comprimidos no período pandêmico. Reduzir os juros na companhia de investimentos públicos significa estimular a expansão da oferta com vistas à elevação da demanda futura. Mas na economia celebrada pelos redatores do editorial parecem existir só dois tipos de decisão: o consumo e a poupança.

Se determinada sociedade escolhe somente entre consumir e poupar, sendo esta última decisão a chave para a queda do juros e a elevação futura do investimento, o nível de consumo corrente cai na mesma proporção de um esforço adicional de poupança (no nosso caso, geração rápida de superávits fiscais e enxugamento da liquidez). Se as empresas verificam uma projeção menor de demanda, diminuem a produção, demitem funcionários e reduzem suas encomendas de matéria-prima.

As massas de salários e de lucros são reduzidas, logo a renda agregada no período seguinte é menor do que a aquela que se tinha quando da decisão de elevar a poupança. Diante de um nível de renda menor, a poupança é insuficiente para servir os níveis de investimento, exigindo um esforço maior dos poupadores… E assim sucessivamente.

Nesse caso hipotético, produzido nos caldeirões da ortodoxia, oferta e demanda tem seu equilíbrio restaurado através da queda da renda e do aumento do desemprego. O remédio do desemprego parece animar também Samuel Pessôa, que em sua coluna na Folha reforçou o discutível diagnóstico do BC: “A inflação é de demanda”:

“Se o choque de oferta elevar a inflação e as expectativas de inflação, o juro nominal precisa subir para que o juro real fique constante. Adicionalmente, se o choque for muito persistente e se a situação anterior era de equilíbrio entre oferta e demanda a pleno emprego, será necessário reduzir a demanda. O instrumento é a taxa de juros.”

O economista ainda oferece a contraprova do próprio argumento ao denunciar a inflação de demanda no setor de serviços e ofertar dados que comprovam a desaceleração desse movimento em 2023 na comparação com o ano anterior. E não, o leitor não precisa desembaçar os olhos para verificar se leu errado: o pesquisador do IBRE-FGV realmente afirmou que se o problema vem da oferta, é recomendável atacar a demanda. Pior: agrega à sua canhestra explicação a existência de pleno emprego. Em que planeta ele vive?

Imaginem se médicos que recebam pacientes com dor de cabeça seguissem essa mesma lógica recomendando antiácido! Esses dois casos que apresentamos têm companhia farta na imprensa especializada. Agora nos cabe entender o motivo.

Um deles, como dito acima, é a ignorância, que por maior que seja não pode ser confundida com ingenuidade. Outro possível é o compromisso do pensamento dominante com os interesses das elites, algo que aparece bem na “tecnicalidade” do Banco Central.

No editorial, o Valor acusa o governo de fazer política ao questionar a orientação do Banco Central e reiterar a indicação de Galípolo. Essa linha de argumento convoca a separação entre a cientificidade da burocracia e as vontades que comandam o ambiente político. É o mesmo que conceber a sociedade como um laboratório para os economistas cujas condições ideais do experimento são atrapalhadas pela política. Orientação, inclusive, que está no cerne da autonomia do Banco Central.

Uma vez mais, ao não encontrarem apoio nos fatos, recorrem à mitologia: existiria uma realidade mágica onde as decisões econômicas não tivessem origens e consequências políticas. A taxa de juros incide sobre os rendimentos dos títulos da dívida pública, alma e coração do rentismo parasitário. É evidente que os interesses financeiros da elite econômica determinam seu posicionamento político. A imprensa e os economistas de corte liberal agem então como porta vozes desses interesses.

Nas ciências duras, como a física, as dúvidas constituem a matéria- prima dos avanços científicos. Na economia, que não tem nada de científica, as certezas embalam justificativas: se as iniciativas do Banco Central não foram exitosas, foi o governo que atrapalhou.

Pergunta: qual técnica justifica a autoridade monetária a lançar recomendações à execução da política fiscal? O que tem de defesa científica na atitude dos economistas ao torturar os dados e os fatos, além da lógica elementar para justificar a posição de uma instituição?

Claramente são posições políticas. Aliás, toda opinião e decisão tomadas em sociedade tem caráter político. Mas essas posições são da pior espécie, pois revestem suas intenções de um falso critério de autoridade. A política implica em tomar partido. Quem ganha e quem perde com a política do BC? Certamente, os favorecidos são os detentores de títulos da dívida pública. Os trabalhadores absorvem os prejuízos que lhes causam as políticas restritivas de direitos que o mainstream econômico apregoa como remédio para todos os problemas.

Excluir a política do rol de atuação humana é próprio de quem dela se serve para afirmar sua dominação. Em homenagem aos 93 anos da professora Maria da Conceição Tavares, reproduzimos um trecho de suas aulas disponíveis no canal de YouTube do Instituto de Economia da Unicamp:

“Só faz de conta que a política não interessa quem manda… O problema é que se disfarça o interesse político, o fazendo em câmaras secretas, em chás, em almoços… Não se trata de ser ostentatório, é possível resolver no jantar das sextas-feiras. Nós não podemos resolver no jantar das sextas-feiras, nós não somos a elite dominante desse país. Não há chá e simpatia, nós perdemos. Somos derrotados (no campo político e ideológico).”

Vencedores da eleição e da democracia vão sendo assim acuados pela plutocracia. Talvez o governo e todos que nele depositaram suas fichas tenham finalmente escolhido deixar de lado a simpatia. Eis que daí vem a fúria das elites, seus jornais e seus economistas, fiéis guardiães de seus privilégios exorbitantes. Até porque convenientemente omitem que a indecente taxa de juros vigente implica em gastos que se situam entre 7 e 8% do PIB anualmente. Ou seja, o juro alto é o risco fiscal por excelência, e não a determinação do governo de minorar o sofrimento excessivo que essa política monetária extrativista provoca à sociedade.

Crédito da foto da página inicial: Fernando Frazão/Agência Brasil


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