A macroeconomia dos míopes e a sorte de Lula

No início deste mês de junho, o IBGE divulgou o PIB do primeiro trimestre de 2023, uma primeira espiada no desempenho da economia no governo Lula. Os economistas e analistas de mercado logo foram desembaçar suas lupas para remexer os dados, produzir explicações e exercícios de futurologia. O problema, ao que parece, é que não são as lupas dos economistas que estão embaçadas, mas a visão mesma que está distorcida.

De fato, o resultado é melhor do que aquilo que se esperava diante das incertezas que rondavam e que persistem neste primeiro ano de mandato do novo governo: no cenário externo, é sabido, o prolongamento da guerra Russo-Ucraniana, as dificuldades europeias no campo da energia – que ameaçam diretamente suas possibilidades de crescimento – e a possibilidade de recessão nos EUA tornam complicadas as perspectivas de expansão da demanda global.

Internamente, a continuidade da política de juros do Banco Central sinaliza uma trilha difícil para novos investimentos em capital fixo, bem como desacelera a retomada do consumo, também complicada pela estagnação do nível de emprego. Como fatores positivos, a agropecuária – grande estrela da ocasião – e o setor de serviços, com brilho menor, escondem o desastre do desempenho da indústria de transformação.

Por um lado, a macroeconomia dos míopes indica uma espécie de “efeito-Lula”, que forçou a reorientação das previsões para perto daquilo que é esperado pelo governo. Na turma dos cegos, reza a lenda de que o bom desempenho é fruto das medidas de Paulo Guedes no fim da gestão Bolsonaro ou de puro e simples acaso.

Nem uma, nem outra. As previsões foram remarcadas no ritmo de suas imprecisões. As últimas tacadas de Guedes só serviram para destroçar o orçamento para 2023 – corrigido pela PEC de Transição – e abrir rombos na Caixa Econômica Federal, no BNDES e na Petrobras; esta última se viu forçada a antecipar o pagamento de dividendos previstos para o início de 2023, a fim de amenizar os efeitos da gastança eleitoreira de Bolsonaro sobre o Tesouro Nacional.

As projeções de mercado cunhadas na fornalha das expectativas racionais identificavam na trajetória da dívida pública um fator de risco para o crescimento. O novo regime de controle e acompanhamento das contas fiscais, que a imprensa convencionou chamar Arcabouço Fiscal, em vias de aprovação, conseguiu aplacar as ansiedades, apontando a direção corretiva das expectativas. O resultado do PIB do primeiro trimestre deu impulso às projeções positivas. O caminho que parece estar sendo traçado é suficiente?

Para avaliar essa questão, do ponto de vista do desenvolvimento, os pontos sensíveis parecem ser: o financiamento, o investimento, a indústria e o emprego. O termo desenvolvimento deve ser reiterado, pois é ilusão imaginar que persistindo nessa nossa longa marcha para fora do circuito dinâmico da tecnologia industrial conseguiremos um período prolongado de crescimento com distribuição de renda, baseado quase que exclusivamente no desempenho do agronegócio exportador, de resto altamente mecanizado e pouco gerador de empregos.

Esse crescimento de agora esconde e, ao mesmo tempo, revela as travas que a manutenção dos juros altos impõe ao desenvolvimento do lado do financiamento: paralisa os investimentos e a indústria, enquanto algum respiro é conseguido pelo setor exportador e minimiza o efeito do alto endividamento das famílias, que tentam voltar ao consumo “fora de casa”.

Aliás, o programa Desenrola, do governo federal, a ser lançado em breve, espera trazer milhões de brasileiros de volta ao crédito via renegociações de dívidas favorecidas por garantias federais. Junto com um incremento na distribuição de renda via novo Bolsa Família, melhorias – ainda tímidas – no mercado de trabalho, nos dissídios anuais que voltam a incluir ganhos reais e na retomada da política de valorização do salário-mínimo, o esperado é que seja favorecido o crescimento do consumo das famílias, que responde por cerca de 70% do PIB.

Levando em conta as tendências contraditórias, o que se desenha é um ritmo quase aleatório, um movimento browniano rumo à precariedade. Se nada mais for feito, cresceremos pouco e dependentes de conjunturas, recuaremos no desenvolvimento e na complexidade econômica. Esse é o diagnóstico possível diante da última decisão do COPOM que, a despeito da coerência, resolveu manter a taxa de juros.

A queda dos juros é condição necessária – embora não suficiente – para a elevação dos investimentos públicos, para a retomada do investimento privado na indústria e, principalmente, para a combinação dos dois fatores na direção de ganhos de produtividade e crescimento dos salários.

Para a infelicidade geral, inclusive do mercado financeiro, Campos Neto acredita ter um olho em terra de cego. A queda recente da inflação, com deflação em alguns setores, eleva a taxa de juros real, freando as antecipações dos mercados reveladas nas taxas de desconto dos títulos e ações. De fato, como demonstra a divulgação do IPCA-15 de junho – que antecipa a tendência da taxa mensal de inflação – a desinflação segue seu ritmo. A inflação de junho tende a zero, aproximando a inflação anual do centro da meta.

A ata da última reunião do COPOM – composto pela diretoria do Banco Central (Bacen) e que decide a taxa básica de juros – comprova a miopia: ainda enxerga desancoragem de expectativas, inflação de preços administrados bem acima da média geral de preços e, pasmem, uma desaceleração no ritmo de desinflação, como se fosse possível manter o ritmo de queda quando a taxa mensal já está tão próxima de zero.

A teimosia, o excesso de conservadorismo do Bacen no manejo da taxa SELIC, já cobra seu preço: segundo a imprensa, interlocutores correram ao governo para amenizar o desastroso tom do comunicado divulgado logo após a reunião do COPOM, informando que a ata a ser divulgada dias depois traria a possibilidade do início de um ciclo de baixa. Puro ilusionismo. A ata fala em parcimônia – mesmo diante da escandalosa taxa real de juros praticada no país – sugerindo um corte de 25 pontos-base na reunião de agosto.

Nesse ritmo, Campos Neto asseguraria a seus patrocinadores na Avenida Faria Lima uma taxa real de juros bem acima daquela que o próprio COPOM enxerga como a “natural”, que acaba de ser elevada nesta última reunião de 4% para 4,5% a.a., até o fim de seu mandato em dezembro de 2024. Parcelas do próprio mercado financeiro, bem como grandes nacos da imprensa mercadista, já veem a blindagem política favorável à autonomia se esvair, de tanto que Campos Neto e seus farialimers esticaram a corda, confiando na independência aprovada pelo Senado Federal. Aqui e ali, já começam a ecoar na grande imprensa epítetos como “Sabotador Geral da República” para o presidente bolsonarista do Banco Central.

As empresas já endividadas seguram seus gastos. Aquelas em posição de investimento desaceleram e mantêm os projetos na planta. De acordo com o que ensinou Keynes: em época de incerteza, o dinheiro fica sob o colchão. Como destacou o vice-presidente Geraldo Alckmin, cada ponto percentual da SELIC representa 38 bilhões de Reais no orçamento do governo que deixam de ser utilizados em investimentos em infraestrutura e nas políticas sociais para serem destinados ao pagamento de juros da dívida pública.

O endividamento das famílias já representa metade da renda habitual, reprimindo a renda disponível para consumo. O nível da taxa SELIC é em parte justificado pelo “risco fiscal”, mas o dublê de vice-presidente e ministro do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) nos demonstra de forma simples e didática que a SELIC exagerada é a causa mesma do risco fiscal que o Banco Central, indo muito além de suas chinelas, pretende combater.

A taxa de investimento da economia (17,66%) segue um pouco acima da média desde a recessão de 2014-2016 (16,97%), mas abaixo da já vergonhosa média desde o Plano Real (18,08%). A queda dos investimentos no trimestre é explicada pela queda na demanda por bens de capital (-5,7%), segundo o IPEA. Isso quer dizer que as empresas reduziram a contratação de maquinário, o que sinalizou a queda na produção industrial que se faz presente. Nem mesmo a reposição da capacidade instalada que se desgasta com o uso está contemplada, ou seja, a capacidade produtiva tende a ir além da estagnação e decrescer.

Esse declínio pode representar a estagnação do emprego no curto prazo e aumento do desemprego mais à frente o que, por sua vez, indicaria uma redução na demanda por bens de consumo, levando a queda das vendas e mais demissões. Sem que essa situação seja revertida pela queda dos juros e pela expansão do investimento público, o brejo engolirá de vez a vaca e dificilmente cresceremos acima dos 1,5% ao ano, algo muito diferente dos 4% ao ano que Lula se costumou a entregar nos dois primeiros mandatos, decretando uma estagnação duradoura no comportamento do PIB per capita.

As dificuldades da indústria vão além do desempenho no trimestre. Em abril, a utilização da capacidade instalada foi a menor desde o final da pandemia, o que reafirmou a tendência declinante do último ano e que se acelerou em 2023. As medidas do BNDES e do governo para incentivar a produção industrial podem ajudar na reversão do quadro que, no entanto, não virá sem expansão do consumo das famílias e dos investimentos. Ou seja: sem queda nos juros e crescimento do emprego de qualidade.

Em virtude da redução dos investimentos e do desempenho industrial, a queda do desemprego está se reduzindo e a precarização do trabalho corre solta e acelerada pela retomada dos serviços urbanos. Continuando como está – o que não queremos crer que aconteça – é possível que o emprego formal decresça e dê mais impulso ao trabalho precário.

Ainda que a retomada das políticas sociais no governo Lula – sobretudo de transferência de renda – tenham devolvido a comida à mesa dos mais desamparados, a precarização e o desemprego apontam no sentido oposto, para uma mobilidade social descendente, isto é, de piora generalizada das condições de vida.

Essas considerações de ordem conjuntural reafirmam as dificuldades estruturais para o desenvolvimento: sem condições minimamente civilizadas de financiamento, as empresas não investem, nem em reposição, nem em ampliação da capacidade produtiva. Muito menos são mobilizados os recursos para modernização tecnológica. Sem ampliar a capacidade de produção, as empresas não contratam, mas demitem no ritmo de suas dificuldades financeiras. Sem modernização, a precariedade do trabalho que engole os desempregados também empurra a renda real dos trabalhadores para baixo, uma vez que a paralisia da produtividade da indústria e a margem mais apertada para a valorização do salário-mínimo obstruem a elevação dos rendimentos. Sem ampliar e modernizar, a indústria continua a perder competitividade em relação à concorrência estrangeira.

No cômputo final do desastre: reafirma-se a reprimarização da economia e, com isso, o crescimento permanece preso ao movimento browniano da demanda externa por exportações. A distribuição de renda piora no ritmo em que o rentismo é celebrado como cura da inflação – entronizada como o mal dos males, para cujo combate qualquer custo social é aceitável – e a renda real dos trabalhadores cresce pouco.

Quanto mais o país recua para o Agropop, pior para a qualidade do emprego, concentrado em setores de baixa qualificação e formalização, como os serviços. Pior para a consolidação dos direitos sociais, pois o orçamento do Estado seguiria enxuto em virtude do baixo crescimento e das amarras do dito Arcabouço Fiscal. Seguiremos mais 20 ou 30 anos nesse percurso? Continuaremos presos ao cotidiano de ampliar a pobreza e racionalizar seus mecanismos de gestão? Aceitaremos mais concentração de renda como remuneração à esperteza do rico que não paga imposto e como flagelo ao pobre que banca a festa?

O governo Lula desenha um projeto de reindustrialização com distribuição de renda. Projeto audacioso, combatido pelas elites e pela mídia. Ainda assim, não é de todo cabível o ânimo de ocasião dos que desfrutam da miopia dos números. Evidente que é crucial a queda dos juros, mas sem enfrentar a questão tributária em sua essência, a regressividade, as simplificações terão efeito imperceptível e a distribuição de renda será pouco efetiva.

Sem ampliar os canais de investimento do Estado, de elevação do crédito público e sem uma plataforma inteligente que articule os campos da indústria, da tecnologia e do meio ambiente, a oportunidade de recriar as bases de desenvolvimento do país será desperdiçada.

Há, portanto, uma responsabilidade da sociedade em pressionar o Banco Central pela reorientação da política monetária. Há a responsabilidade do governo em dedicar esforços para obter um aumento da progressividade fiscal e para o massivo investimento tecnológico na indústria e na infraestrutura; para a ampliação do crédito público e para garantir a ampliação dos direitos sociais.

A retomada de uma política industrial efetiva, de valorização de conteúdo nacional, da volta do Investimento Estrangeiro Direto – não do investimento especulativo – para expansão da capacidade produtiva no país, e não para a aquisição de capacidade já instalada, embora de difícil execução e mais difícil percepção de efeitos em curto prazo, nos parecem essenciais para fugir da armadilha da regressão estrutural em que estamos enredados.

Ademais, o juro real excessivamente elevado que experimentamos agora, graças à sabotagem do BC, atrai capitais para operações de arbitragem: dada a quase abissal diferença entre os juros reais nos países centrais e no Brasil, é altamente lucrativo tomar empréstimos em bancos europeus e americanos para aplicar em títulos públicos no Brasil, com risco soberano em Reais.

Descontado o risco cambial, tais operações são extremamente atrativas, e a inundação de dólares que provocam explica em boa parte a valorização do Real frente ao dólar, o que traz dificuldades adicionais à indústria, por favorecer a importação e encarecer a exportação. Baixar a SELIC também favorece a indústria pelo reequilíbrio do câmbio.

Os desafios são enormes, maiores do que os encontrados em 2003 por Lula. Mas aparentemente a retomada do papel de destaque do Brasil no cenário mundial começa a rapidamente dar frutos: fala-se em dezenas de bilhões em investimento estrangeiro, seja para a produção ou para a conservação ambiental.

Entre outros investimentos anunciados, espera-se para logo que a chinesa BYD, fabricante de carros elétricos, ocupe a antiga fábrica da Ford em Camaçari/BA, aumentando a oferta de veículos não poluentes, que pode e deve ser opção preferencial para as frotas públicas de veículos automotores. A matriz energética limpa tende a receber vultosos investimentos, rumo à produção massiva de hidrogênio verde.

Há moderadas razões para otimismo, mesmo diante da conjuntura internacional difícil e da cerrada oposição dos rentistas e de suas substanciais representações políticas e midiáticas. A realidade se impõe, e seguirá se impondo, ainda que a má vontade ainda hegemônica teime em associar os pequenos sucessos desse início de governo a uma suposta sorte de Lula ou ainda – acreditem se quiserem – a uma imaginária “herança bendita” de Bolsonaro, como de resto foi também o discurso majoritário da grande mídia quando Lula sucedeu a Fernando Henrique Cardoso.

O mercado internacional de commodities muito favorável e a boa ordem em que teria sido deixada a economia foram os fatores decisivos para os bons resultados de Lula I e II, acreditam esses fiéis da Igreja da Sacrossanta Mão Invisível.

Lula é um homem de muita sorte. Seus antecessores fizeram tudo bem-feito, mas não colheram os frutos de seus bons trabalhos. Tudo ficou para o sortudo Lula, que obteve duradouro sucesso, embora fazendo tudo errado em termos de política econômica durante quase uma década. Vai entender.

Crédito da foto da página inicial: Ricardo Stuckert/Divulgação Presidência da República


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