A entrega do Brasil avança: o desmonte do INPI

Você sabia que o Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, órgão do governo federal que concede patentes de invenção e registra marcas comerciais, também foi o responsável, durante décadas, pelos procedimentos de registro público de contratos que licenciam ou alienam esses direitos de propriedade industrial e fiscalizam a transferência de tecnologia?

Poderíamos dizer, inclusive, que o INPI tem uma longa tradição e um papel extremamente relevante de defesa do desenvolvimento econômico e industrial no Brasil através destas práticas. [1]

Todavia, a partir da abertura econômica que teve início no Governo Collor, as atividades regulatórias e fiscalizatórias do INPI foram gradualmente sendo enfraquecidas e esvaziadas, em sintonia com a lógica de minimização da ação estatal. Até que agora, em 2017, cerca de um ano após a ascensão de Temer ao poder, o INPI foi final e lamentavelmente destituído de toda e qualquer participação substantiva no mercado de tecnologia.

Para o cidadão comum, que não está envolvido na complexa discussão sobre tecnologia e propriedade intelectual, o assunto pode parecer bizantino. Não é. Um breve resgate histórico do papel do INPI na economia brasileira revelará a importância estratégica desse aparelho do Estado como instrumento de defesa da economia nacional frente aos interesses econômicos das grandes corporações estrangeiras.

O INPI foi criado em 1970 (Lei nº 5.648/70) com a missão inicial, descrita da seguinte forma (Artigo 2º):

“O Instituto tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica.”

“Parágrafo único. Sem prejuízo de outras atribuições que lhe forem cometidas, o Instituto adotará, com vistas ao desenvolvimento econômico do País, medidas capazes de acelerar e regular a transferência de tecnologia e de estabelecer melhores condições de negociação e utilização de patentes, cabendo-lhe ainda pronunciar-se quanto à conveniência da assinatura, ratificação ou denúncia de convenções, tratados, convênio e acordos sobre propriedade industrial.”

Contudo, como dito mais cedo, esta missão foi revista e reduzida no contexto de desregulamentação e liberalização que marcou os anos 1990, como se observa na nova redação do Art. 2º presente na Lei nº 9.279 de 1996[2]:

“O INPI tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial.”  

Desse modo, resta claro como o INPI abdicou da função de orientar e, em alguns casos previstos na política industrial oficial, como, por exemplo, no período conhecido como o de substituição de importações, escolher a tecnologia considerada conveniente e realmente impactante para o desenvolvimento econômico do País.

Muito embora tal restrição tenha representado uma mudança importante para a formação da infraestrutura econômica nacional (um dos impactos mais sentidos foi a expressiva expansão das remessas de royalties ao exterior), o INPI ainda manteve certas condições de fomento do mercado interno, dando orientações mínimas para a realização de contratos, constrangendo possíveis abusos e questionando ações restritivas ao pleno desenvolvimento das atividades produtivas e da capacidade de inovação das empresas nacionais.

Mesmo depois de tantas “flexibilizações”, durante muitos anos os diversos governos que se sucederam à entrada em vigor da nova legislação, e também o próprio Instituto, continuaram a sofrer enorme pressão de organizações empresariais e seus escritórios de advocacia para que o mercado de tecnologia fosse totalmente liberalizado.

Desta forma, as grandes empresas contratantes, nacionais e estrangeiras, poderiam gozar de absoluta liberdade para estabelecer os deveres e as obrigações que bem entendessem entre si, à revelia da posição menos favorável dos agentes residentes (seguidores tecnológicos com limitada capacidade de desenvolver tecnologia autonomamente), ignorando qualquer contrapartida à sociedade e ao seu interesse de obter a máxima vantagem e capacitação por meio das tecnologias importadas dos países centrais. Tal pressão passa hoje por uma perigosa mudança de qualidade.

Após enfrentar a resistência solitária da área técnica do INPI dedicada ao trabalho, essas pressões finalmente lograram êxito, e com o suporte do governo de Michel Temer, conseguiram impor uma agenda concentradora de riqueza, a partir da elaboração e implementação da Instrução Normativa INPI/PR Nº 70 em 1º de julho de 2017, que determinou que a Coordenação Geral de Contratos de Transferência de Tecnologia (CGTEC), antiga Diretoria de Contratos, Indicações Geográficas e Registros (DICIG) do INPI, deixasse de analisar os contratos de maneira integral.

Desse modo, foi afastada a responsabilidade de verificar a conformidade dos contratos à legislação fiscal e à legislação de remessas de royalties (que definem, conjuntamente, limites da dedução do imposto de renda, prazos restritivos à manutenção do vínculo contratual e condições a serem observadas entre empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico).

Como resultado disto, o Certificado de Averbação, documento final expedido pelo INPI que dá ao detentor a autorização para envio de pagamentos ao exterior e ainda o habilita a receber o benefício de redução na alíquota de imposto de renda (contrapartida oferecida por razão das externalidades positivas da entrada de tecnologia no País), não mais reflete a análise criteriosa das cláusulas de “prazo” e “valor” e eficácia da transferência, passando a considerar apenas as informações declaradas pelas próprias empresas nos contratos. A avaliação dessa trajetória histórica revela a enorme gravidade desta simplificação para o futuro do Brasil.

É importante destacar outra dimensão de ilegitimidade dessa medida governamental drástica. Além de esta favorecer grupos de interesse privado, a nova normativa não foi acompanhada de mudança na legislação, ou seja, carece até mesmo de respaldo jurídico. A proposta de alteração do papel do INPI no âmbito da análise dos contratos de transferência de tecnologia, com a justificativa de que se faz necessário apenas garantir efeitos perante terceiros, deveria não só estar estritamente condicionada a atos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, no sentido de alterar, de fato, as disposições legais vigentes relativas ao papel do INPI[3], mas também respeitar o interesse de toda a sociedade, primordialmente afetada pelas mudanças.

Diante da inegável relevância pública do assunto e do desenvolvimento tecnológico e econômico do Brasil, a fim de que o INPI possa desenvolver suas atividades regulatórias e fiscalizatórias em plenitude, em estrita consonância com suas atribuições constitucional e infraconstitucional, devem lhe ser assegurados mecanismos efetivos de ação. Tais mecanismos devem permitir ao INPI proceder, ex ante, a análise substantiva da documentação que lhe é apresentada, à luz de todo arcabouço legal pertinente, isto é, a legislação fiscal, de remessa de capital e de direito de propriedade industrial em vigor, de modo a garantir a integridade do sistema e resguardar as reservas cambiais nacionais de possíveis desfalques irregulares, bem como zelar pelo equilíbrio macroeconômico e o mercado interno que constituem patrimônio do País.

Não reconhecer a competência histórica e específica do INPI para levar a efeito ações no âmbito da atividade industrial interna, a exemplo de intervenções contratuais na órbita tecnológica, desatende a regra inserta no art. 240 da Lei 9.279/96, por inobservância do seu núcleo normativo[4].

Hoje, o País e o mundo se encontram em um contexto preocupante; vivemos uma crise econômica sem precedentes, e um verdadeiro estado de exceção, em que uma das consequências mais cruéis é o desmonte total da máquina pública voltada ao interesse da sociedade enquanto totalidade. A cada dia mais direitos individuais e coletivos são sobrepujados pela camarilha que governa para poucos sem o menor pudor. O reflexo disto nas instituições que promovem o interesse público é o seu crescente sucateamento material e institucional.

Notas

[1] A atuação histórica do INPI na averbação dos contratos de licenciamento de direitos de propriedade industrial e registro dos contratos de fornecimento de tecnologia e franquia observa, primariamente, a legislação do direito de propriedade industrial (Lei n° 9.279, de 14 de maio de 1996), e, acessoriamente, a legislação cambial (Lei nº 4.131 de 03 de setembro de 1962, Decreto nº 55.762 de 17 de fevereiro de 1965) e fiscal (Lei nº 3.470 de 28 de novembro de 1958, Lei nº 4.506 de 30 de novembro de 1964, Lei nº 8.383 de 30 de dezembro de 1991, Portaria nº 436 de 30 de dezembro de 1958 do Ministério da Fazenda e demais portarias deste Ministério, Decreto nº 3.000 de 26 de março de 1999 e Instrução Normativa nº 1.700 de 14 de março de 2017) para emissão de suas decisões.

[2] O Brasil, assim como diversos outros países do mundo, promoveu uma reforma na legislação nacional de patentes por razão do fim da Rodada Uruguai do GATT, que deu origem à instituições como a OMC, sob ampla influencia do Consenso de Washington e das políticas neoliberais de desregulamentação dos fluxos de capitais e redução das intervenções estatais nas economias.

[3] A alteração introduzida pelo artigo 240 da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, retirando o Parágrafo Único do artigo 2º da Lei nº 5.648 de 11 de dezembro de 1970, que criou o INPI, não revogou as competências delegadas ao INPI pelo Banco Central do Brasil, conforme Resolução BACEN nº 3.844/2010 e pela Secretaria da Receita Federal, conforme Regulamento do Imposto de Renda, Decreto nº 3.000 de 26 de março de 1999 e Instrução Normativa nº 1.700 de 14 de março de 2017. No entanto, tramita, neste momento, no âmbito do Congresso Nacional, proposta que tem por finalidade retirar a averbação da Lei nº 9.279, como é o caso do Projeto de Lei nº 7.599/2017.

[4] A decisão do Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão do Recurso Especial nº 1.200.528 – RJ (2010/0122089-1) de 16/02/2017, relatado pelo Ministro Francisco Falcão reforça tal entendimento, ao estabelecer que ao se outorgar competência a determinado órgão (no caso o Instituto Nacional da Propriedade Industrial) faz-se necessário equipá-lo com instrumentos efetivos de ação regulatória.

Crédito da foto da página inicial: Sumaia Villela/Agência Brasil

 

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