A Elite e Zé-Maria, um conto sobre a desigualdade

Sobe no trem às 6h da matina um tal de Zé. O Zé carrega sua marmita com arroz, feijão e ovo, bafejando calor embaixo do braço, enquanto esse trabalhador tenta se equilibrar a cada sacudida da grande minhoca de ferro que o carrega, rasgando o espaço da cidade em alta velocidade.

No trem, se encontram outros Zés. Suas marmitas carregam o mesmo arroz, o mesmo feijão, o mesmo ovo, em muitos casos menos que isso. Um Zé cumprimenta o outro com o aceno de cabeça que deixa transparecer o cansaço estampado nas olheiras de uma noite mal dormida. Entre um ponto e outro, seu Zé pensa alto como se conversasse com o plano divino, pedindo um auxílio para fechar as contas do mês, ou pelo menos colocar comida na mesa. A velocidade do trem impede qualquer conversa mais profunda, pois a pontualidade da hora do trabalho faz com que um Zé passe diante do outro sem que um consuma do outro alguma atenção.

Zé bate ponto às 8h, atropelando o meio-fio para chegar na hora e não ter minuto algum descontado do salário. Entre um pingo de suor e outro, a chuva que chega, com pingos também, lembra ao Zé que esquecera do guarda-chuva pela pressa com que deu um beijo nas crianças e saiu para pegar o trem. Assim vão os dias, os dias dos vários Zés. Já o patrão muito ocupado para lembrar o nome de cada um, conhecendo-os pelo número de inscrição na firma, para não errar, chama cada Zé de Zé ninguém.

Na volta para casa, o patrão entra no carro com os vidros escuros levantados. Acende o cigarro e segue para o condomínio onde vive, protegido da chuva que cai. No caminho, não deixa de passar pelo restaurante estrelado para encontrar outros patrões. Entre eles fala-se sobre tudo. Os juros, a bolsa de valores, o desempenho do setor. Mas o assunto favorito é uma reclamação, pois: quanto absurdo pagar tanto ao Zé, se ele não tem nem instrução. Absurdo maior: são muitos Zés, tantos ninguéns que comem um pão de lucro, impedindo que entre os patrões seja servido mais uma lagosta.

O jornal das 18h anuncia que a inflação dispara. Os patrões assistem juntos, se entreolhando pela fumaça dos cigarros e charutos. Todos pensam o mesmo: vamos aumentar os preços, proteger nossas margens e, caso precise, demitir algum Zé para poupar o custo. Não muito longe dali, Seu Zé volta para casa, novamente no balanço do trem. O badalo da igreja é pontual. O trem também. Sempre sacoleja mais naquela curva, naquele trilho avariado e mal construído. Ouvindo de canto de orelha que a inflação aumentou, seu Zé pensa: “Fodeu!”, posso tirar o ovo da marmita diária, mas e o leite das crianças?

Preocupado, seu Zé chega em casa, mal abraça os filhos e já tem que se preparar para dormir, sem comer tanto, pensando em guardar para o dia seguinte. Chegada a hora de dormir, o Zé lembra que amanhã o dia é igual, mas o salário é reduzido, uma tal de inflação é quem comeu. Lutando contra o corpo cansado, encosta perto na TV velha, pequena, paga em prestações ao vizinho que subiu de cargo e se mudou da Cohab.

Está passando jogo do mengão, o narrador ouve as preces de seu Zé e logo anuncia um gol. Três pontos na tabela. Seu Zé pega no sono, amparando a cabeça do filho mais novo no braço, enquanto com o outro afaga a cabeça do mais velho que está triste, pois o mengão do pai ganhou do seu coringão.

Ao final, eu que li essa história em algum jornal, pois todo dia essa história é contada sempre igual, descubro que seu Zé Ninguém, na verdade, é dona Maria, mãe de três. Mãe sozinha. Seu dia é o mesmo que aquele narrado para o seu Zé, a diferença é que seu destino ao pegar o trem não é para a fábrica, mas para a casa do patrão. Lá ela veste o uniforme, nina as crianças da patroa, a quem chama de Senhora.

O braço balança, ninando a criança, antes de colocá-la no berço que, se não é de ouro, é o dobro do preço do salário que a Senhora paga a Dona Maria. Ao ver a criança adormecer, Dona Maria não vê distinção entre os cabelos loiros e os olhos azuis daquele bebê, com o cabelo crespo, a pele negra e os olhos escuros de suas próprias crianças.

A Senhora, no entanto, nem sabe quantos filhos Dona Maria tem, antes de anunciar que seu salário será cortado também. O preço do salão de beleza subiu e o marido, patrão da fábrica onde seu Zé trabalha, quem mandou

: ou corta o cabelo, faz as unhas e passa na butique, ou vá dizer para a “negrinha” que seu salário será cortado. A Senhora, perguntando o porquê, recebe de pronto a resposta: “a inflação, porra!”, você não leu o jornal? O patrão bate a porta, sai apressado, acorda o filho que estava dormindo, Dona Maria quem vai afagá-lo.

Passado alguns meses, outra notícia no jornal da noite: crise no mercado, a bolsa desabou. O patrão que já havia se informado, antes mesmo do noticiário, pegou seus contos e trocou por dólares num tal mercado (de dinheiro). Demitiu Seu Zé e Dona Maria que hoje passam juntos pela fila. A fila da fome. No Brasil, metade é Zé, outra metade é Maria.

Os Patrões e Senhoras vão à Miami curtir seus dólares. Essa foi a última notícia que tive, antes do filho de seu Zé ser preso e a filha de dona Maria engravidar, de um canalha que não pensou duas vezes antes de sozinha lhe deixar. Foi negado o aborto à menina, como ao filho de seu Zé foi negada uma explicação: o Patrão que cheira pó pode comprar, e eu quem vendo passo fome. Por que não, se nós dois queremos dinheiro?

A criança nascida recebe todo carinho de sua avó, Dona Maria. Sua mãe, ainda muito menina, troca a boneca pela fralda. Na cadeia, o filho de seu Zé, descobre uma tal de facção que protege quem é irmão. Ele que tinha ouvido o professor falar sobre as formigas que se juntam em bandos para lutar contra a falta de comida na estação fria, se vê sem alternativa. O cano na cintura é seu protetor, contra a farda que protege as posses do Patrão, aquele mesmo que o acusou de vender o pó. O pó já foi, Patrão foi quem cheirou para ficar ligado, lá mesmo, no noticiário.

A Senhora já não se satisfaz com as compras que tanto faz. Ao ver a família rica e assim mesmo triste, não vê saída que não seja um gole de gim para aguentar o baque, e para dormir dois comprimidos de Prozac.

Outro noticiário, apresentado pelo pinga-sangue do helicóptero que sobrevoa a Cohab, persegue os rastros da chuva que arrasam com os barracos construídos no barranco. Distraído o espectador nem nota que: de um lado da tela, há fartura. Do outro, há fome. De um lado, condomínio com seguranças armados. De outro, barracos, a Cohab, cuja única proteção é a milícia, ou a facção.

Ao escrever o conto, ouço o choro do bandolim de Cartola. Ele não sabia escrever e era poeta. O rico patrão que sabe, é, no máximo, um pateta. Não tem sentimentos. O choro do bandolim, ecoa fazendo do cavaquinho de Nelson, um retrato do Brasil: folhas secas pisadas do alto das nossas mangueiras. Vai chegando outra sexta-feira. Quem sairá no jornal? O capitão que protege a milícia, ou o operário que quer tirar o garoto daquela situação de vender bala no sinal?

Belíndia, Sr. Acadêmico, é o caralho. O Brasil é África! Na sua riqueza cultural que a nós faz contente. Na sua pobreza material, também (será, de repente!). Na pele. Na história. Nos lucros que iam para a coroa com a venda dos negros e hoje vão para o banqueiro, chefe do tal Banco Central. Volto para contar outra história. Por hoje, digo “tchau”.

Ao amigo André Luiz Passos Santos

Crédito da foto da página inicial: Suzana Vier/Rede Brasil Atual


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