A classe trabalhadora virou a vanguarda do atraso?

Muita coisa se diz, mundo afora, sobre a migração da classe trabalhadora para os partidos e candidatos da direita. Isso teria acontecido na Europa, nas últimas duas décadas. Repetir-se-ia agora, na eleição norte-americana: o Tea Party e Donald Trump teriam seduzido a “white working class”, arrancando-a da tutela política do Partido Democrata. Muita confusão reina em todas essas interpretações. Mas vamos nos concentrar no caso americano.

Faz algum tempo, uma pesquisa encomendada pelo NY Times mostrou a composição fortemente classe média (e nada baixa) do Tea Party. Mas, com Trump, podemos ser mais detalhados, desagregando resultados das urnas.

Antes de mais nada, vale lembrar que, na supostamente épica eleição de 2008, Obama ganhou somando quase 70 milhões de votos, contra 60 milhões de seu opositor, McCain. Já naquela ocasião, vários analistas chamaram a atenção para esse elo menos forte da coalizão democrata, o segmento trabalhista branco. Os democratas perdiam, como antes, no sul, em que se precisa considerar o ruído local, produzido por uma orquestra direitista bem organizada e bem azeitada. Mas, agora, os “azuis” também balançam nos tradicionais redutos do meio-oeste e do nordeste, o vibrante Manufacture Belt que, em tempos recentes, se tornou o melancólico Rust Belt, o cinturão da ferrugem, da sucata.

Novo, mas nem tanto. E nada surpreendente para observadores atentos. Devemos lembrar Mitt Romney, o candidato perfumado que não fazia qualquer esforço para mostrar que detestava cheiro de pobre. Pois bem, ele ganhava de Obama entre os eleitores da chamada white working class (48% vs. 35%), mesmo nos estados do nordeste e meio oeste, embora sua grande vantagem fosse entre os trabalhadores do sul (62% x 22%!).

Mas é pelo menos um exagero afirmar que Trump e a nova direita conquistaram o coração e a mente da chamada white working class desviando-a do seu suposto e badalado leito “progressista e democrático”. Primeiro, é preciso dizer que esse eleitorado nunca foi tão progressista e democrático assim. O movimento trabalhista americano sempre foi solidamente habitado por direções racistas, ultraconservadoras e imperialistas. Os falcões democratas eram até mais bicudos do que os republicanos. Segundo, é mais do que impreciso afirmar que esse segmento migrou em proporção significativa para a chamada nova direita.

É muito mais realista afirmar que o que se viu, sim, foi a desistência de votar em Hillary-Killary. Não apenas por parte da tal classe trabalhadora branca, mas, também, para boa parte do eleitorado negro e latino. E isso ocorreu em estados decisivos para a contagem dos delegados do colégio eleitoral. O colunista da revista Forbes Omri Ben-Shahar explica esse fato em seu artigo no website da revista (“The Non-Voters Who Decided The Election: Trump Won Because Of Lower Democratic Turnout”, 17/02/17, disponível aqui).

Em Michigan, por exemplo, Obama venceu por 350 mil votos de diferença, mesmo em 2012. Hillary perdeu por 10 mil. Ela simplesmente viu sumir 300 mil daqueles votos obamistas. Com resultados de chorar em regiões de trabalhadores, em Detroit e Wayne Conty. Note bem: esses eleitores não migraram para Trump, eles simplesmente não foram para Hillary. Trump não brilhou nesse reduto – recebeu apenas 10 mil votos a mais do que Romney tinha conseguido, um crescimento desprezível para alguém que se pretende campeão da classe trabalhadora. Algo semelhante ocorreu, ainda mais severamente, em Wisconsin, onde Trump simplesmente não cresceu. Empacou no mesmo número de votos de Romney em 2012. Mas o voto democrata simplesmente desabou.

E a debandada não atingiu apenas os trabalhadores brancos. Hillary venceu entre os negros, é verdade, mas com percentual menor do que Obama (85% contra 93%). Em outras palavras, uns 2 milhões de negros desistiram de votar no PD. Olhe para o mundo latino e verá algo parecido.

Essa nossa interpretação fica reforçada quando tentamos compreender a monstruosa abstenção, numa eleição que se diz tão “eletrizante”. Uma pesquisa do conhecido Pew Resarch Center (ver aqui e aqui) focaliza esse mundo nebuloso dos “não votantes”, isto é, da enorme massa que desiste de escolher. A tendência geral é gritante. Nas eleições presidenciais, 52% dos eleitores votaram. Clinton e Trump dividiram esse pacote – mais ou menos 25% do eleitorado para cada um deles. Mais de 100 milhões resolveram simplesmente ficar de fora. Com base na pesquisa, pode-se dizer que nessa massa a grande maioria rejeita Trump, embora não faça grande esforço para votar em alguém como Hillary. Pouco se lixa. Ou muito se lixa, depende de como olhamos.

As pesquisas do Pew Research mostram que os “nonvoters” são majoritariamente simpatizantes ou potenciais votantes do PD (54x 30%). Que votariam em Obama contra Romney na proporção de 59 x 24%! O condicional do verbo faz a diferença.

Daí se entende por que, para os conservadores, é estratégico baixar o quorum, esfriar o eleitor, principalmente o eleitor com determinado perfil. Nos últimos dez anos, os republicanos montaram verdadeiras máquinas voltadas não para conquistar votos, mas para “cassar” o direito ao voto, com foco em potenciais eleitores democratas. Vários recursos legais foram utilizados, mas talvez o principal seja mesmo o ideológico, a indução ao alheamento político. Como se produz esse alheamento? Desmoralizando o próprio ato de votar ou fazer política. Esse seria o resultado da prática midiática de criminalizar a política ou rebaixá-la em confronto com as “decisões de mercado”, supostamente mais eficientes e “justas”, meritocráticas.

O problema desse esvaziamento da política e do voto aparece mais tarde. Afinal, que alternativa resta para os “indignados e desanimados”, aqueles que se veem derrotados pela batalha cotidiana (no mercado) e ao mesmo tempo descreem na política? As possíveis respostas não são muito animadoras.

Mas essa é a pergunta que resta para a esquerda, se quiser ter um papel no futuro. A esfinge está aí. Resta decifrar. Diz o roqueiro mineirinho que a resposta sabemos de cor, só nos resta apreender.

Crédito da foto da página inicial: EFE/ Alba Vigaray

Comentários

2 respostas para “A classe trabalhadora virou a vanguarda do atraso?”

  1. Avatar de Luiz Fernando
    Luiz Fernando

    A questão da instrumentalização do “alheamento” político pelos grupos de interesse está na ordem do dia das pesquisas em CP. Pelo menos penso eu que assim deveria ser…

  2. Avatar de Rogério Maestri
    Rogério Maestri

    Caro colega. Chamo-o de colega, pois durante 36 anos fui professor da UFRGS, porém por pertencer à área das engenharias, felizmente ou infelizmente não tive a chance de me permitir a dizer bobagens na minha área (só poucas) coisa que vejo sistematicamente na área de ciências humanas me dando a liberdade de classificar este teu texto como tal e talvez refutá-lo com outra, mas deixando de lado o prólogo vamos ao que interessa, a crítica.
    Eu fico abismado quando vejo que ainda até agora os cientistas sociais não entenderam o processo atual que ocorre na política, a falta de sensação de representatividade dos candidatos simplesmente porque deixaram de lado o discurso básico para caírem no que os profissionais da comunicação chamam de “retribalização” da sociedade moderna e da forma de fazer política.
    Este conceito emprestado do guru da teoria da comunicação moderna (guru é uma boa expressão para quem trabalha em comunicação) “Marshall Mcluhan”. Num dos seus principais livros, “A Galáxia de Gutemberg” ele lança uma espécie de divisão histórica em que o homem primeiro se comunica via de tradição oral no que ele chama a tribalização primitiva. Após esta tribo primitiva há toda uma evolução, que não vem o caso, para desembocar no que ele chama a tribo moderna.
    Como na época em que Mcluhan escreveu e teorizou sobre isto, não havia um ciberespaço como nos dias atuais ele não desenvolveu muito o conceito, mas seus continuadores criaram o conceito das “cibertribos”, que acham estes mesmos como uma nova forma de democracia participativa que poderiam através de superposição de diversas superestruturas atingirem uma verdadeira democracia participativa. A concepção do partido REDE é mais ou menos baseada nisto.
    Porém o problema da concepção da grande superestrutura que abraçaria as demais tem diversos problemas inviabilizam esta organização e não permitem que o conceito e a organização da primitiva tribo transfiram-se ao grande congraçamento de tribos, pois vamos a eles e no fim encaixar a crítica ao teu artigo.
    Primeiro, e o mais básico, que a tribo primitiva tinha uma característica humana que não conseguimos transferir para as “cibertribos”, o contado direto entre os membros e estabelecimento de laços de irmandade e confiança entre os seus membros. Na tribo primitiva a confiança entre os membros e ao chefe era baseada no conhecimento direto além do discurso da atitude dos mesmos. Nas “cibertribos” enquanto elas estão se constituindo e os ingressantes são novos nesta superestrutura confiam-se no discurso inicial, não se procurando contradições nas chefias das tribos ou reais ou aparentes traições nestes chefes. À medida que a tribo vai evoluindo as desconfianças e as contradições aparecem e com elas o segundo problema, a nucleação.
    Com o aumento do tamanho da tribo, pequenas diferenças entre seus “chefes” iniciais e o surgimento de lideranças que além de pensarem um pouco diferente que no início, há uma tendência natural de surgirem os embates ideológicos ou até mesmo de egos. Criando um impulso centrífugo que pode gerar a divisão do grupo. Na tribo primitiva, além do constrangimento físico de necessitar de outro espaço físico para o grupo se dividir, havia outras formas de resolução de disputas das mais diversas formas, coisa que nas “cibertribos” não existe.
    Porém se parasse por aí os problemas da nova organização, temos nas “cibertribos” duas formas de manifestação do individualismo são manifestadas. O individualismo que conhecemos, característica humana que é exacerbada quando não há um controle do grupo sobre o indivíduo e algo ainda pior para a criação de “cibertribos”, o individualismo de cada tribo em relação a outra.
    Esta última forma de individualismo tribal, faz com que os membros de cada grupo que se comunicam somente em torno de seus problemas terminam de os supervalorizarem e torna-los prioritários em relação aos demais. Quanto mais antigo for o grupo, quanto mais tradição na luta pelos seus direitos específicos em relação aos direitos gerais, será mais difícil a união.
    Pois agora vamos às eleições norte-americanas, no início havia dois grandes candidatos democratas, Bernie Sanders, que apesar de ser membro do partido democrata estava fora do “mainstream” do partido, e Hillary Clinton (por muitos chamada de Killary Clinton, devido a sua ideologia e ação belicosa) que adotava claramente o discurso das grandes tribos, ou seja, a união entre a tribo das mulheres, dos negros e dos latinos.
    Sanders por se negar a um discurso de tribos, adotando um discurso mais tradicional de classes sociais, foi preterido por Hillary, pois esta aparentemente (na verdade nunca se pronunciou a favor) estava pró discurso de reparação dos descendentes de ex escravos algo impossível de ser aprovado no congresso norte-americano. Em todas as pesquisas tendo um bem mais claro discurso de esquerda que beneficiaria os negros pobres do USA e conseguia intenções de voto até em grupos tradicionais republicanos, porém devido ao negar as tribos perdeu o voto exatamente na comunidade negra.
    Com a exclusão de Sanders, Hillary voltou ao velho discurso segmentado dos democratas, onde os direitos das mulheres, dos LGTBs, dos negros e latinos eram premiados individualmente. Salvo se houvesse propostas revolucionárias em termos de direitos específicos destes grupos, o seu discurso era velho e cansado e por motivos pessoais e da evolução da vida política da mesma ela não conseguiu nuclear em torno do seu nome das grandes tribos citadas.
    Agora a pergunta que resta, e porque Trump ganhou? Simplesmente porque ele notou que o discurso de Hillary não atingia um grupo remanescente que não está organizado em termos de tribo, porém simplesmente notou que estava excluído das tribos existentes, por isto aceitava Sanders que mesmo mais a esquerda os incluía, porém não aceitava Hillary.
    A minha conclusão é exatamente contrária a opinião do artigo comentado, o voto foi negado, pois o discurso de Hillary nunca foi um discurso direcionado a classe trabalhadora, mas sim a tribos específicas em que nelas muitos que naturalmente pertenciam, como as mulheres, não pensaram como tribo.
    Vanguarda não significa simplesmente dizer, eu sou liberal (caso norte-americano) ou eu sou de esquerda (caso europeu em geral), vanguarda é apresentar posições inclusivas de vanguarda e executá-las.

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