O que essa onda gourmet tem a ver com a desigualdade social?
24/09/2015
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Basta observar as prateleiras dos supermercados ou as fotos de pratos sofisticados nas redes sociais para concluir que a intensa onda gourmet invadiu a vida de parte considerável da classe média brasileira nos últimos anos. Millôr já dizia que “o gourmet é um comilão erudito”. A moda é adquirir erudição via delivery?
Do lado dos ofertantes (indústria e comércio de alimentos) há um ganho considerável com a ampliação da diferenciação de seus produtos vendidos: diet ou fitness (light, diet, funcional, “detox”), natural (vegetariana, vegana) e calórica ou estética (gourmet, linha premium).
Mesmo quando um novo nicho nasce por meio de um movimento crítico ao modelo de alimentação industrializada (sustentável e orgânico), passa a ser produzida e consumida por uma lógica de mercado, que tem o poder de englobar as críticas, reificando-as em suas mercadorias.
Ao criar uma maionese gourmet com um toque de azeite mediterrâneo, um achocolatado orgânico ou inúmeras opções de cervejas importadas e artesanais, por exemplo, o preço adicional desses novos produtos supera o custo adicional, aumentando, dessa forma, a margem de lucro.
Além disso, o marketing propiciado pela “inovação” culinária favorece a imagem da empresa, fortalecendo sua marca e ganhando novos apreciadores.
Porém, não podemos entender essa onda gourmet apenas por uma lógica microeconômica por parte da empresa. É necessário compreender a lógica social do consumo e relacioná-la com as mudanças recentes da sociedade brasileira.
A alimentação, aspecto tão importante da esfera cultural e social, passa a ser subordinada a uma lógica do mercado, que massifica, homogeneíza e pasteuriza os produtos alimentares e ao mesmo tempo globaliza e diferencia, criando milhares de opções de pequenas variações de um mesmo e único produto.
Não é de hoje que o consumo é uma forma de demonstrar prestígio e status: Thorstein Veblen, há mais de um século, já fazia referência ao papel do consumo conspícuo na distinção social, crescente com o desenvolvimento da indústria moderna, que, ao formar maiores espaços urbanos, com meios de comunicação mais avançados e maior mobilidade populacional, expunha os indivíduos à observação de muitas pessoas: a reputação social era diretamente relacionada à prática de exibir o consumo de bens e impressionar os observadores em relação à capacidade de pagar.
Já nos anos 1950 e 1960, a massificação dos bens de consumo nos países mais desenvolvidos, juntamente com o crescimento dos centros urbanos, maior poder da publicidade, popularização da TV, grandes centros de compra etc., tornaram o consumo no capitalismo um tema ainda mais central.
O sociólogo Jean Baudrillard afirma que essas mudanças nas décadas posteriores ao segundo pós-guerra formaram uma ideologia do consumo, pois a abundância de objetos de consumo criava uma ilusão de “salvação”, tanto para felicidade, como para a igualdade social.
Porém, a massificação das mercadorias ocorria junto à ampliação da desigualdade em relação à manipulação dos significantes sociais do consumo. Isso ocorre, pois, a estrutura social de privilégios se reproduz por meio do crescimento econômico e é por isso que toda “abundância” convive com a “penúria”.
A concepção de luxo e consumo mais sofisticado se modifica com o tempo. O que é gourmet hoje pode, amanhã, se tornar algo trivial. Um dos elementos que possibilita isso é a tecnologia que, em um curto espaço de tempo, faz com que os bens de luxo se tornem mais baratos, ao massificar a produção por meio de redução de custos.
Ao mesmo tempo, ocorre uma criação de novos “produtos gourmets”, a fim de preservar a distância social, com a criação de novas formas para manter a estrutura de diferenciação, em relação ao tipo de trabalho, nível cultural, saber, poder etc.
Bourdieu esclarece que o modo de consumo é um código, um símbolo e mesmo quem adquire poder aquisitivo pode não ter condições de participar. As preferências e gostos de consumo individuais são determinados pela classe social a que pertence e pela trajetória de vida e suas peculiaridades individuais. Portanto, o consumo deve ser entendido como distinção de classe e reprodução dessa distinção.
Dessa forma, o gosto, por ser uma construção social, une e desagrega. Une os iguais, que através das redes sociais irão “compartilhar” e “curtir” o modo gourmet de preparar uma refeição ou escolher um prato em algum sofisticado restaurante. E que, ao criarem essa interação por uma simples foto de uma refeição, reafirmam sua posição social.
O que se observa no cotidiano da onda gourmet é justamente o exótico, que simboliza sofisticação. Não importa se o espaguete à bolonhesa (receita da vovó) ficou mais saboroso que o risoto Parma ao molho de papaya com aspargo ensinado pelo chef do momento: o que verdadeiramente importa é o que fica bem na foto, aquele que vai trazer maiores curtidas e comentários, que pareça ser exclusivo e poucos fariam ou teriam o privilégio de experimentar.
Nos últimos anos ocorreram consideráveis mudanças sociais, com maior acesso ao consumo, desde viagens de avião até TV tela plana. A mobilidade social propiciada principalmente pelas melhorias no mercado de trabalho e facilidade ao crédito favoreceu a maior integração da população a determinados bens de consumo.
Mas o consumo integra e discrimina ao mesmo tempo, para preservar a diferenciação social: quanto maior a integração da população ao universo cultural do consumo, mais intensa é a discriminação e a criação de nichos. O estilo de vida gourmet é, dessa forma, constituído a partir da capacidade de produzir, diferenciar, praticar e ressignificar o consumo.
A palavra gourmet se transforma em um adjetivo massificado que vai aos poucos perdendo valor simbólico para as classes sociais mais sofisticadas e acaba saindo de moda. Assim, o adjetivo pode até perder seu sentido original, mas certamente outros virão, para a continuidade da preservação da diferenciação social, que é a lógica que rege o consumo na sociedade contemporânea.
Crédito da foto da página inicial: brigadeiros gourmet da Petite Sucrerie
Discordo, por vários motivos.
É óbvio que, no Brasil, o grupo ocidentalizado gerou por exclusão uma massa não ocidentalizada que é mantida à distância desde a 1ª República, de muitas formas diferentes. Nos últimos 30 anos, a forma de afastamento físico dessa massa é por uma política de preços altos para uma série de bens e serviços, muito mais altos que em outras sociedades.
O funcionário de um bar do Baixo Augusta paulistano contava a um amigo que cobrava uma consumação elevada porque se não “os baianos invadem”. Cubbers dos Jardins e arredores assistiram com certo desconforto a chegada aos clubes da moda de clubbers da periferia, apelidados logo de cybermanos. Não sei se aumentaram os preços para afastá-los, mas é sempre uma estratégia.
Isso é fato.
Mas em relação ao universo da gastronomia dita ‘gourmet’ há, penso, dois movimentos, ambos legítimos e normais.
Por um lado, há o desejo de parte da população em provar novos sabores, vindos de outras culturas e terras distantes. Um misto de curiosidade e hedonismo, de ânsia por prazeres novos, inéditos, que saiam da rotina. Um movimento que ocorre em todo o Ocidente desde o surgimento da subcultura yuppie nos anos 1980. A universalização do sushi e do sashimi é o marco inicial da vertente gastronômica do fenômeno.
Nos EUA esse processo é ainda mais visível que no Brasil.
Por outro lado, há empreendedores (em geral pequenos, em empresas familiares) que vêm nessa abertura ao novo um novo nicho de mercado e investem nisso. E dá-lhe brigadeiro gourmet, pipoca gourmet, tapioca gourmet etc.
Claro, lógico, o processo é múltiplo e cheio de virtudes e vícios.
Novamente falando em dois ‘lados’ (há mais, certamente), por um lado há o embuste, gente que quer surfar na onda mas não sabe nem o que é swell, coloca cardamomo e noz pecã no brigadeiro e acha que pode cobrar 10 reais a bolinha; e por outro lado há pessoas que odeiam prazer e consumo (e prazer no consumo) e ficam de mimimi em defesa da comida simples, das tradições, o arroz com feijão (que adoro) a 1 real blá blá blá.
Eu fico com a sofisticação, sempre.
Quanto aos preços, o Brasil é caro, ser classe média no Brasil é caro, por isso os prestadores de serviço cobram caro. Precisamos quebrar esse círculo vicioso, mas não é querendo que os empresários que investem se contentem com um padrão de vida modesto. Temos é de baixar os preços de tudo.
Parabéns pelo trabalho. Percebia isso mas faltava-me essa visão mais ampla.
Gostei muito do artigo, e tempos eu observo que existe algo diferente, e que transforma no quesito alimentação. Esse artigo esclareceu bem.